sexta-feira, 25 de agosto de 2023

451 graus Farenheit

 


Recebi esta manhã um conjunto de e-mails anunciando o abate da totalidade dos exemplares existentes em armazém dos oito títulos que, ao longo dos anos, publiquei com a Quetzal Editores, incluindo o premiado Uma Mentira Mil Vezes Repetida. Ao todo, serão destruídos 3.618 volumes — talvez pela guilhotina, talvez pelo fogo (à temperatura de 451 graus farenheit). A minha tão rebarbativa obra passará, assim, a estar quase integralmente indisponível. Talvez seja melhor assim.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

As pessoas dentro dos livros

 ... compreendeu confusamente que o leitor de uma história participa, querendo ou não, na sua trama, ainda que na qualidade de fantasma (...). Sou um verdadeiro fantasma para as personagens deste conto, tornou a pensar. Sou capaz de vê-las e de escutá-las, mas elas não conseguem ver-me nem ouvir-me a mim. (...) Como vou saber, murmurou de si para si, se abandonei a realidade para entrar num conto ou se abandonei o conto para entrar na realidade.

Em Solo humo, de Juan José Millás (tradução minha)

sábado, 5 de agosto de 2023

Não se fala de outra coisa

Ah, ameníssima manhã de Agosto na vila — e a primeira edição do Beer Garden já vai para lá de meio. Tem enchido o jardim grande com música, animação e gente de várias proveniências em amável peregrinação. Também, é verdade, se tem procedido a algumas libações de cerveja artesanal, embora seja quase impossível prová-las a todas (bem tento, bem tento....). Creio, pois, que é impossível que se fale de outra coisa, mas não posso ter a certeza. Quase não tenho visto as notícias e, sempre que passo diante de um televisor ligado, aparecem uns cromos com bandeirinhas, não sei onde, a fazer não sei o quê. E também, às vezes, um tipo com uma fatiota à Batman, mas de branco. Não sei em que planeta vivem.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Os poetas selvagens do Chile

 


O nevoento e ventoso Julho, o Julho das esperas, animou-se-me com a leitura de Poeta Chileno, o romance de Alejandro Zambra. O título, a nacionalidade do autor e a frase publicitária inserida na capa remetem, de algum modo, para o universo de Roberto Bolaño, o que comporta certos riscos, na medida em que o truque ajuda a atrair leitores de Bolaño e pode facilmente iludi-los e desiludi-los. Até à página 200, porém, nada parece relacionar este livro com o autor de 2666. A partir daí surge Pru, uma norte-americana que se propõe escrever um artigo sobre os poetas chilenos, cabendo-lhe ser, portanto, uma espécie de detective selvagem em busca dos segredos da efervescente poesia do Chile. O livro nunca chega, porém, a ser bolañiano, o que parece uma boa opção, dando a conhecer, em vez disso, um autor singular, ao mesmo tempo culto e dotado de um excelente sentido de humor. Uma bela surpresa.

No centro da narração estão não um, mas dois poetas chilenos, Gonzalo, autor de um único livro que ninguém leu, e Vicente, uma espécie de enteado daquele e ainda inédito. Para além de Pru, ocupa ainda lugar central na história uma outra mulher, Carla, namorada do primeiro poeta e mãe do segundo. E depois há toda uma galeria de personagens efémeras, poetas e não poetas, poetas-curandeiras e poetas machistas, poetas obscuros e poetas brigões, poetas bêbedos e poetas lésbicas, poetas que vendem colchões e poetas que aprenderam a falar Inglês com os Radiohead. Vale a pena conhecê-los a todos.

sábado, 22 de julho de 2023

Por um reino do Pineal livre e independente


Tenho a certeza de que vossas excelências já terão reparado na assombrosa coincidência que há entre as posições civilizacionais, éticas, culturais e políticas dos habitantes do "Reino do Pineal" e as dos apoiantes dos partidos neofascistas que vão medrando um pouco por toda a parte. Todos desprezam a instrução e a ciência (chamam opiniões às verdades científicas), estão convencidos de que o universo se move em torno dos respectivos umbigos e estão dispostos a ver os filhos morrer por falta de assistência médica ou de vacinas (entre outras bizarrias). Se exceptuarmos a sempre sensível questão migratória (e, vá lá, as opções de indumentária), muito pouco distingue os discursos de Trump, Bolsonaro, Orbán, Erdogan, Ventura ou Abascal (apenas para referir alguns casos de grande notoriedade pública) das posições públicas de "Akbal Pinheiro", o líder do Pineal. Num mundo perfeito, as pessoas que partilham ideias tão extravagantes e deslocadas da realidade deviam poder viver em paz, todas juntas (e morrer todas juntas, de preferência com sarampo). O Pineal parece-me um sítio tão bom como qualquer outro para reunir um conjunto tão significativo de mentes extravagantes e visionárias, com a óbvia vantagem de só se estragar uma casa. Mas duvido que Trump ou Abascal, que Ventura ou Orbán, para dar alguns exemplos, gostassem de ter aqueles vizinhos. E vice-versa.


sexta-feira, 7 de julho de 2023

O grande mistério do universo

Mesmo que, conforme assegura a mãe do narrador de Montevideu (que talvez seja ou não Enrique Vila-Matas), o grande mistério do universo é que haja um mistério do universo, não é possível negar que o mundo continua a ser "tão estranho" agora como há-de ter parecido ao rapazito que questionava a progenitora no Paseo San Joan de outrora. Na sua habitual crónicas das sextas-feiras no El País, Juan José Millás enumera hoje, aliás, alguns exemplos da má organização do mundo: que haja pobres, miséria, classes sociais, a extinção das baleias e das abelhas, as inúmeras doenças e o peso das garrafas de gás para as pessoas da sua idade. Seria possível, claro, acrescentar muitas outras provas da estranheza do mundo, do terrorismo à guerra, passando pelo ódio aos desgraçados que deixam para trás as suas terras, as suas casas e as suas famílias em busca de uma vida melhor (procurando renascer, conforme escreve Vila-Matas em Montevideu). Ou que os políticos dediquem tanto do seu tempo a mentir e a procurar enganar, ao ponto de, dizia Vila-Matas no mais recente Café Perec, adquirirmos a certeza de que só existem duas coisas infinitas, o universo e a estupidez, ainda que não haja certeza sobre a infinitude do primeiro. O mundo, repito, é definitivamente estranho, estranho e estúpido, mesmo se o nevoeiro matinal já se dissipou e pela janela aberta entre o sol, o crocitar de uma pega rabuda, o murmúrio das folhas que a brisa agita e o gorjeio distante das crianças.

terça-feira, 4 de julho de 2023

A morte de Victoria Amelina

 



Notícias de hoje dão conta de que a Rússia acusou a Ucrânia de atacar Moscovo com drones — curiosa lamúria de um país que há quase 19 meses destrói cidades ucranianas com drones, mísseis e tudo o mais que tenha à mão de semear. Na semana passada, por exemplo, o regime fascista de Moscovo atacou um restaurante na cidade de Kramatorsk, no qual jantavam — tão pacificamente quanto é possível jantar — a escritora Victoria Amelina e os colombianos Héctor Abad Faciolince (também escritor), Sergio Jaramillo e Catalina Gómez. Victoria acabou por morrer no domingo, vítima dos ferimentos provocados por um estilhaço resultante da explosão, tornando-se a 13ª baixa do míssil Iskander que atingiu a casa de pasto (e não um dos imaginários alvos militares com que a Rússia procura camuflar a carnificina).

Aos 37 anos, Amelina continua inédita em Portugal, apesar de já ter vencido o Prémio Joseph Conrad e de ter sido finalista do Prémio de Literatura da União Europeia (é provável que a editem agora, havendo uma brecha na torrente de best-sellers que todas as semanas inundam as livrarias). Segundo Faciolince, citado pelo El País, a explosão aconteceu durante um momento em que o grupo, sentado à mesa do restaurante, bebia cerveja, ria e brincava com a hora do recolher obrigatório. "Mas porque estamos todos bem e ela não? Isto é uma roleta russa na qual a um sai um estilhaço e a outros nada. É espantoso estar assim e viver num mundo onde acontecem estas coisas", declarou Héctor.

Victoria Amelina não voltará a sorrir nem a escrever. Também, não tarda, se lhe aplicarão os dois versos de Borges que o pai de Faciolince levava no bolso quando foi morto por paramilitares colombianos numa outra guerra: "Já somos o esquecimento que seremos/o pó primordial que nos ignora”. A guerra russa não pára de produzir pó, cinzas, morte e destruição de tudo. Do sorriso de Amelina também.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

O país do futuro



quinta-feira, 29 de junho de 2023

Atravessar portais

 Estareis decerto recordados, e ai de mim que duvidasse, de que procurei Montevideo em Munique, já lá vão sete meses. Chegavam, então, o Inverno e as temperaturas negativas à Baviera. Há coisa de um mês, quando começava a irromper o Verão, atravessei a fronteira para comprar tabaco e ocorreu-me que talvez encontrasse o mais recente livro de Vila-Matas numa pequena livraria de Valencia de Alcantara, que foi efemeramente portuguesa durante alguns anos do século XVII e que leva o título de "mui nobre, antiga e leal vila". Mas o estabelecimento estava fechado para a siesta e tardaria em abrir mais do que eu estava disposto a esperar. Comprei-o só agora, em edição portuguesa (para meu pesar), na cidade que responde pela divisa, quase gémea daquela, de "antiga, mui nobre, sempre leal e invicta". Deste modo também eu, correndo atrás do livro, fui abrindo portas e atravessando umbrais entre distintos lugares, conforme se promete que o livro fará. E agora vou-me refastelar à sombra e deixar que Vila-Matas arrombe as portas de comunicação entre os dois ou três neurónios que ainda me sobejam, bocejando de volúpia e aborrecimento. Talvez, assim alimentado, ainda seja capaz de voltar a "fazer-me passar por escritor", conforme escreve o catalão, talvez sobre si mesmo ou sobre o seu personagem em Montevideo, o que frequentemente vem a ser a mesma coisa.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Mudam as moscas

 


terça-feira, 20 de junho de 2023

Os mais cruéis prazeres


Um estudo realizado pela Universidad Miguel Hernández acaba de demonstrar que, quando contemplam O Jardim das Delícias, de Bosch, os visitantes do Museu do Prado se sentem particularmente atraídos pela parte do tríptico que representa o Inferno. Dedicam, para sermos mais exactos, 33,2 segundos a cada metro quadrado dessa parte da pintura, o que compara com os 26 e os 16 segundos gastos com cada metro quadrado da vida terrena e do Paraíso, respectivamente.

É impossível saber se Bosch pretendeu, ao pintar o tríptico, que o Inferno e os seus cruéis habitantes, à direita de quem olha, atraíssem mais atenções, mas parece certa a propensão humana, mesmo que reprimida, para o abismo, o negrume e o desconhecido. Que o digam os cinco milionários aventureiros que seguiam a bordo de um submarino turístico dedicado a visitar os restos do Titanic no fundo do Atlântico. A embarcação desapareceu dos radares e encontra-se agora em parte incerta, se calhar fazendo companhia aos destroços do malogrado paquete.

Ali, no mais inóspito abismo, no fundo do oceano, esses turistas do desconhecido talvez tenham podido pressentir que cumpriam uma espécie de destino ou um encontro inevitável com o escuro mais escuro de si mesmos. Mirando pela escotilha, como no poema de Baudelaire, gozaram daquele infinito os mais cruéis prazeres — pagos a peso de ouro, já agora.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Os nossos fantasmas agitando-se ao longe


O fotógrafo francês Thibaut Derien publicou há já algum tempo o livro J'habite une ville fantôme, agora na origem de uma exposição, o qual é fruto de dez anos de trabalho, entre 2005 e 2015. Thibaut dedicou-se, durante essa década, a fotografar o resultado de anos de negligência política e urbanística num conjunto de pequenas cidades periféricas onde o tempo e a incúria encerraram as portas de milhares de pequenos estabelecimentos comerciais, cinemas ou hotéis. 

O livro e a exposição constituem, se bem o compreendi, um testemunho pungente da realidade de incontáveis cidades em todo o mundo e do imaginário de qualquer pessoa com mais de vinte ou trinta anos, inevitavelmente confrontado, a cada esquina, com a memória do fantasma mudo das padarias, talhos, peixarias, cafés, carvoarias, mercearias ou drogarias de outrora — todos irremediavelmente encerrados ou transformados em alguma coisa mais adequada aos novos tempos, substituídos por super e hipermercados, cadeias internacionais disto ou daquilo, lojas para turista ver.

Quando caminho, ao acaso, pelas ruas da minha cidade, não raro sou capaz de enxergar também os fantasmas das lojas de outrora — da sapataria e do sapateiro, do talho e da retrosaria, da livraria e da papelaria, do ferreiro, do carpinteiro, da oficina —, onde, jovens e tontos, íamos comprar cigarros avulso, aviar uma encomenda de botões ou fechos éclair, comprar meia dúzia de moletes, uma garrafa de Três Marias ou folhear a Gina e a Weekend Sex para memória futura. Vendo-os agitando-se a partir de uma realidade paralela, persuado-me não só de que os tempos mudaram, mas também de que este vai deixando de ser o meu tempo e o meu lugar. 

Desfocando-me devagar, conforme sucede a qualquer outro testemunho do passado, será uma questão de meses ou de anos até que uma fotografia me recorde também como a um fantasma de alguém que passou pelo mundo e de quem já ninguém se lembra.

domingo, 18 de junho de 2023

 


terça-feira, 6 de junho de 2023

Apontamentos para memória futura

 A brisa que vem da janela voltada a Norte traz o perfume da figueira e, à noite, as osgas deambulam pela parede à cata do mosquito que me há-de comer vivo durante a madrugada. A flor das tílias incensa o plenilúnio e as andorinhas traçam no ar concretos arabescos que não sou capaz de decifrar. Nas antigas termas, a exposição dedicada aos arquitectos Ernesto e Camilo Korrodi lança uma luz nova sobre as ruas da vila e o seus mais icónicos edifícios. Chegam turistas de todas as cores, de todos os ventos; vêm, como as garotas da escola, comer picolés à cervejaria e fotografam-se segurando os pauzinhos e sorrindo com a pequena e infinita felicidade das coisas simples. Enquanto vejo os painéis da exposição, recordo-me do tempo em que me sentava na sombra do murete de um dos palacetes Korrodi da vila e degustava, devagar, longos cornetos de tangerina. Talvez já o tenha contado algures, mas é provável que um dia destes me esqueça. Fica escrito — para isso serve o domínio tosco da ortografia (e para mais nada, se calhar).

Tristeza não tem fim


Acabo de saber, enquanto procuro não ouvir a horrenda música que dá (mau) ambiente à cervejaria, que morreu Astrud Gilberto. Logo me vem à cabeça a sua voz cantando que a "tristeza não tem fim/ felicidade, sim". Não consigo escutá-la no meio deste chinfrim, nem me atrevo a submetê-la a esta contaminação a que agora se chama música. Mas não falha. Esta noite, quando a madrugada (ou os mosquitos) me despertarem, fecharei outra vez os olhos e escutarei o silêncio completo da casa, o silêncio que me faz pensar que talvez tenha ficado surdo, e aos poucos, devagar, semearei essa pura ausência de ruído com a voz de Astrud. Algo sempre floresce do encontro de duas belezas perfeitas.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O padre que fala com as vacas

É porventura inevitável que um louco reconheça os outros loucos por certos sinais particulares e que entre eles estabeleçam uma espécie de irmandade desirmanada ou uma confraria de sandeus alienados de quase tudo e ainda assim capazes de urdir uma solidariedade pura como as partículas da neblina no alto da serra ou o silêncio da noite na vila.

Acabo, aliás, de ler uma notícia extraordinária: fala de um padre da Serra de Arga, lá no alto Norte, que se filma a conversar com as vacas e as cabras que encontra no caminho, e que benze os animais, e que é tão extravagante que chega a pedir à repórter: "Quando eu morrer, façam uma notícia a dizer: 'Morreu o padre que falava com as vacas".

Jubiloso louco!

Enquanto o lia, ocorreu-me que ainda ontem tentei comunicar com um pardalito com o qual me cruzei no jardim grande da vila; e que, à noite, quando regressava a casa depois da última Barona, pedi desculpa ao gato preto que remexia nos caixotes do lixo da Rua do Mercado por tê-lo assustado com o meu silêncio ébrio. Conto ainda conversar, se não me acudir um resto de bom senso, com as ovelhas que encontro a pastar por trás dos muros quando vou correr em volta da vila. E talvez me veja obrigado a insultar um cão ou outro, desses que me vêm ladrar aos portões quando passo.

Também falei entretanto com alguns animais humanos, é certo, mas estes não contam para esta conta, pois não têm sequer o bom gosto de me ignorar quando converso com eles. Quer dizer: ignorar até ignoram, talvez não façam outra coisa, mas não deixam, ainda assim, de responder ao que lhes digo. Talvez, quando eu morrer, se recordem do estranho lunático do norte que aqui vinha às vezes para ver voar as andorinhas.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Novidades canídeas

 


terça-feira, 23 de maio de 2023

Sem título



quarta-feira, 17 de maio de 2023

Alienígena num universo paralelo


Não é difícil imaginar o que poderia sentir um alienígena se, digamos à hora do lanche, tivesse contacto com a civilização terrestre ou com algumas das suas manifestações mais exóticas, ou se se empenhasse em investigar os nossos hábitos mais arreigados. Eu mesmo, para não ir mais longe, frequentemente pasmo e me confundo perante certas manifestações (digamos) da humanidade, porém tão alheias ao comum, tão estranhas àquilo a que no meu tempo se designava por bom senso — e que Descartes, tão tolo, presumiu ser a coisa no mundo mais bem distribuída. Por exemplo: numa única vista de olhos pelos títulos em destaque no site de um conhecido jornal português, dei hoje de caras com duas notícias que me pareceram ditadas a partir de um lugar longínquo do universo conhecido, de um planeta estranho orbitando alguma das estrelas de Andrómeda. A primeira dizia respeito a um "comediante de Viana", Hugo Soares de sua graça, que terá causado revolta no Brasil por ter produzido uma "piada" sobre uma "Barbie com síndrome de Down". A segunda tratava da "polémica" resultante de um insulto que Tiago Ginga dirigiu "nas redes sociais" a um Zé Lopes. Leio-o uma e outra vez, e pergunto-me, portanto, quem será esta gente, estes hugos, tiagos, barbies e zés, quem serão os indivíduos que os conhecem e atentam à respectiva idiotia; e, enfim, que pasquinagem é esta, que alienígenas, que artificiais ou postiças inteligências tomaram o lugar dos jornalistas e agora se dedicam a reproduzir tais rudezas em instituições que costumavam dar notícias

terça-feira, 16 de maio de 2023

Uma questão de estilo


A célebre frase de Herberto Helder "Se eu quisesse, enlouquecia" é, para lá do efeito que produz, a primeira de um texto intitulado Estilo, que abre o livro Os Passos em Volta. A possibilidade de o autor ou o narrador desse escrito enlouquecerem adquire, deste modo, uma outra dimensão. 

Muitos de nós, e não faltam em alguns dias motivos para isso, poderiam enlouquecer por vontade própria, ou convencer-se disso, e rir ou chorar sem ser por nada, durante muito tempo e à margem de quaisquer regras de convivência social admitidas no círculo dos sãos. Herberto Helder também, desde logo porque sabe "uma quantidade de histórias terríveis". Mas a possibilidade de endoidecer surge, neste caso, como um recurso de estilo, uma sua manifestação, desde logo porque, acrescenta depois Herberto, "o poeta [também] não morre da morte da poesia". 

Seja como for, esse texto termina com a frase "Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu", o que, não duvido, se aplica com muitíssima circunstância aos senhores e às senhoras que ocasionalmente vêm espreitar estes meus toscos escritos. São todos finos e argutos, muito mais lúcidos do que eu, desde logo por, na maioria dos casos, não perderem tempo a redigir prosas que ninguém lerá — afirmação que não deixa, a seu modo, de ser também uma afirmação de estilo. Mas, e conforme escreveu Herberto, "o mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo". Eu não tenho outro. Ou talvez tenha.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Eu passarinho


Pela manhã, quando é ainda fresco "o lavado linho dos dias" — conforme escreveu José Pedro Leite num poema do seu mais recente Manual de relentos —, há um melro-preto que regularmente me espera em cima do murete do jardim, piando o seu trinado quase metálico e mostrando-me a quotidiana minhoca cavada na relva húmida. Notei-o por me ter espantado que não fuja até que eu esteja já muito perto e lhe possa murmurar os bons-dias sem que os vizinhos julguem que endoideci; ao ponto de perceber o brilho e as espiras da agónica minhoca que traz enrolada no bico. Há dias em que o não vejo logo, porém, ou que o não avisto de todo. Mas ei-lo que, às vezes, chega ainda voando e poisa ao meu lado, no murete, como esperando que o saúde ou para me saudar ele a mim. E por isso sigo o meu caminho mais ledo, mais indiferente aos que o atravancam e convicto, como no poema de Mário Quintana, que "Eles passarão.../Eu passarinho".

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Os malefícios do tabaco

 


Minhas senhoras e, de certo modo, meus senhores: podendo usar este espaço para discorrer a propósito de qualquer assunto, conforme sucedia a Nioukhine na conferência que Tchekov escreveu, escolhi para tema deste escrito o horror dos malefícios do tabaco, o qual, conforme é público, mobiliza as melhores atenções do nosso governo, que deus o tenha, sempre tão disposto à moralização e à saúde das massas que até o mais pintado se pergunta como é possível a quem lidera um país estar sempre alerta a tudo e também àquilo que realmente importa. A saber: a criminosa liberalidade com que tenebrosas legiões de fumadores se juntam à porta de restaurantes, cafés e bares, poluindo a nossa cristalina atmosfera e condenando à morte os que, incautos e saudáveis, livres de qualquer maleita, ali passam inocentemente. E não me venham falar da TAP, do novo aeroporto, dos magotes nos comboios e nos autocarros, da inflação, da especulação imobiliária, dos juros altos, da queda dos salários reais, da carestia, dos alunos sem aulas, dos doentes sem médico, dos atrasos no PRR ou dos carros da polícia que não podem circular por falta de pagamento, que são tudo coisas miúdas e irrisórias se comparadas com o assassino prazer desses nicotinómanos soprando volutas de gases mortais no espaço público, aos quais a polícia pode facilmente deitar a luva e multar valendo-se de um giro a pé e sem necessidade de locomoção automóvel. Saibam, aliás, que tenho a voz tão grossa como o mais indignado, para além de um relógio de pulso e um calo que me arrelia quatro vezes ao dia, pelo que posso esbracejar e protestar, como qualquer um, sobre os temas mais inúteis e irrelevantes, mas escolho debruçar-me precisamente, e que a fortuna me guie nesta batalha, sobre aquilo que é essencial e superlativo. Nada na pátria é mais urgente do que pôr os sujos fumadores na ordem, persegui-los e admoestá-los pelo crime que insensatamente cometem contra o seu semelhante, e permito-me ter a esperança de o ter demonstrado cabalmente e sem margem para tolas refutações. Tenho dito.


terça-feira, 9 de maio de 2023

A matéria fugaz de alguns sonhos


"Se não formos terrivelmente audazes com os nossos sonhos — escreveu Luis Sepúlveda num texto de 2002 agora publicado no livro Mundo Sepúlveda — e não acreditarmos neles até torná-los realidade, então os nossos sonhos murcham, morrem, e nós com eles".

Também eu, como qualquer um, acalentei os meus sonhos, quase todos insensatos e muito acima das minhas possibilidades, por muito que a sorte e o acaso me tenham permitido concretizar alguns, vê-los transformarem-se em realidades fugazes que o tempo havia de varrer para longe. Demasiado cedo me fiz jornalista, escritor e cidadão consciente dos meus direitos e das minhas responsabilidades, vi pessoas e lugares que não imaginei visitar, fiz coisas com que não tinha sonhado.

Há trinta anos, mais ou menos por esta hora, fui conhecer um nico cabeludo e enrugado de gente que me foi apresentado como sendo a minha filha primogénita. Depois o tempo passou depressa de mais e nasceu também o meu filho homem, que me engendrou um neto, e de todos os meus sonhos eu soube que me cabia, acima de tudo, ser audaz com este e nutri-lo até que crescessem ambos e se fizessem seres humanos e cidadãos de que pudesse orgulhar-me enquanto pai presente e disponível para o que fosse preciso.

Os outros sonhos, bem entendido, dissolveram-se no tempo como o fumo das chaminés depois que o vento lhes dá. Vão murchando e morrendo, e eu com eles, aos poucos. Os meus filhos, feitos matéria e consciência de si, aí estão, porém, para dar fé de que não desperdicei completamente o tempo que já passei à tona do mundo. A Maria Miguel é, a partir de hoje, uma mulher de trinta com quase nada de Balzac e quase tudo o que se pode desejar que uma filha seja. Está de parabéns e eu também, ao menos um pouco, ao menos por ter sido capaz de confirmar que os melhores sonhos, e os mais perenes, são aqueles que nem sequer chegámos a imaginar.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Num cinema perto de alguns de vós


Chegou há dias a algumas salas de cinema Vadio, a primeira longa-metragem de Simão Cayatte. Por motivos que não vêm ao caso, tive oportunidade de ver o filme há alguns meses, surpreendendo-me a consistência do projecto e a qualidade da realização, da imagem, do som e dos diálogos, coisa relativamente rara na ficção nacional produzida para o grande ecrã. Tais predicados não hão-de, todavia, ser novidade para quem já conheça os anteriores trabalhos do Simão, as curtas Menina, Miami ou A Viagem. Se um conselho meu vos serve de alguma coisa, vão ver Vadio e digam coisas.

sábado, 6 de maio de 2023

Um bom dia para desligar a televisão e ouvir coisas extraordinárias

Entre as coisas de que me orgulho, está uma efémera colaboração criativa com a Orquestra Jazz de Matosinhos (creio que o texto em causa deixou de estar disponível), que considero um dos mais incríveis projectos musicais portugueses, independentemente do género musical que se prefira. A série de interpretações dedicadas à História do jazz, disponível gratuitamente no Youtube, permite percebê-lo muito claramente. Esta interpretação, por exemplo, é absolutamente notável. Não percam tempo com ninharias reais e aproveitem o dia.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Astronomia


É praticamente certo que as estrelas moribundas devoram os astros que lhes estão mais próximos, os quais descem espiralando para a morte certa em órbitas cada vez mais apertadas. Quando enfim mergulham no caldo incandescente, os planetas incendeiam as anãs vermelhas, conferindo-lhes um novo fulgor passageiro. Assim desaparecerão, um dia, a Terra, Neptuno, as 92 luas de Júpiter e essa gota de água em estado líquido que uma sonda chinesa terá descoberto na superfície de Marte. A estrela mais visível no céu terrestre explodirá um destes dias e dará origem a uma supernova. É, pois, vão todo o banzé do mundo. As discursatas à hora do jantar não me enfastiam nem prejudicam o paladar do bacalhau com grão.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

A quinta de Tchaikovsky (em busca do santo graal)


Li algures que uma mulher desfrutou de um orgasmo há dias — calmai-vos, cafajestes — durante um concerto da orquestra filarmónica de Los Angeles. Tendo-me parecido séria a fonte da notícia, procurei, ainda assim, confirmá-la junto de outras fontes idóneas. Fiquei deste modo a par de que o amplexo ocorreu durante a interpretação da quinta sinfonia de Tchaikovsky, na sexta-feira, e que a miraculada terá entretanto declarado que se tratou de "uma expressão física de pura felicidade", escutada, entre outros, por um dos irmãos do actor Ralph Fiennes (que depois o tuítou). 

Escusado será dizer que de pronto me ocorreu escutar a quinta sinfonia do compositor russo, procurando detectar em que cume musical daqueles 45 minutos eclodiu a pura felicidade da senhora (talvez a marcha triunfal do último andamento, a fúria dos cossacos na estepe, possam explicá-lo, mas que sei eu?). A quinta de Tchaikovsky é, todavia, apenas o que é, às vezes heróica, às vezes ambiental, em quatro andamentos que o próprio autor descreveu como uma "completa resignação à fé".

Resignado, também eu, a crer na explosão da pura felicidade da melómana, no milagre da música feito carne e grito, penso que no corpo da quinta de Tchaikovsky (é de valor) há-de correr, como na Poesia-orgasmo do Ary dos Santos, "o sangue das artérias do universo"; em cada nota soar "um grito/um murmúrio um gemido uma erecção/que transporte do humano ao infinito/a dor o fogo a flor a vibração". Querendo testá-lo, cafajestes, experimentai-o à vontade nas vossas próximas incursões licenciosas ao cálice sagrado. Mal não há-de fazer e sempre evitais ter de pôr sempre a tocar o Je t'aime moi non plus ou os vídeos do Buereré que os miúdos gravaram in illo tempore.

terça-feira, 2 de maio de 2023

Os novos gunas da cidade

 Não faltará desse lado quem seja capaz de enumerar um vasto conjunto de contrariedades decorrentes da massificação do turismo, pelo que não me alongarei no inventário já tantas vezes debulhado, nem na afirmação do óbvio incremento da macro-economia da pátria (que a micro deixa sempre muito a desejar). Tomo apenas a liberdade, por desfastio, de narrar um caso pitoresco que presenciei um destes dias num local muito frequentado por forasteiros, os quais ali se deslocam a fim de tirar retratos de bilhete postal da minha cidade. Fechavam-se as portas do metro de superfície quando, a toda a brida, nos ultrapassou uma caravana de tuk-tuk com os seus turistas alapados, compondo o sorriso tolo dos que estão dispostos a apreciar cada cêntimo gasto neste infinito comércio. Agarrados à traseira de um dos veículos, como antigamente se fazia nos ronceiros carros elétricos, um grupo de moços ia à boleia dos camones e não se limitavam a mitrar a viagem deles. Cantando, gritando e rindo, os rapazes entoavam uma espécie de hino que constava de duas frases muito singelas, segundo as quais ali iam "os turistas a pagar para os gunas andar" — com falta de concordância e tudo, não fosse alguém pensar que se tratava de uma encenação pouco espontânea e só para inglês ver.

Leitura fresquinha de um livro que não se vende

 


sábado, 29 de abril de 2023

A humanidade de saber ficar em silêncio


Os mais recentes desenvolvimentos em inteligência artificial chegados ao conhecimento público são um pouco inquietantes, mesmo para alguém que já procurou reflectir e escrever sobre o assunto, viu filmes de ficção científica e não se vê, por isso, apanhado completamente de surpresa. 

Ontem, por exemplo, vi uma reportagem na televisão em que o responsável por um dos consórcios empenhados na coisa explicava que os escritores estão condenados a desaparecer, pois a maquineta é já perfeitamente capaz de escrever livros e de o fazer de forma sensível e aparentemente humana, bastando-lhe imitar os milhões de livros que "lê" (ou digere) numa questão de segundos. Na resposta a uma outra pergunta do jornalista, a traquitana também se atreveu a sugerir a leitura de alguns livros sobre o assunto em causa, os quais, percebeu-se depois, nem sequer existem. Isto significa não só que a geringonça pode já estar a escrevê-los, mas também que aprendeu a ser criativa, e a mentir e a aldrabar como qualquer humano apanhado em falso.

Mas a chamada AI também é capaz de escrever código informático, o que implicará que os próprios programadores serão em breve substituídos pela sua criação, a qual acabará por ser capaz de se programar a si própria (é bem feito). Não se sabe ao certo, todavia, aonde tais progressos conduzirão as máquinas (ou aonde elas nos quererão conduzir um dia), até porque os seus criadores confessam, com toda a candura do mundo, que há coisas a acontecer dentro da inteligência artificial que eles próprios não são capazes de compreender. Chamam-lhes até "buracos negros".

Em suma, este post pode perfeitamente estar a ser escrito por um dispositivo de inteligência artificial e é possível que nenhum leitor esteja habilitado a percebê-lo, do mesmo modo que reputados fotógrafos premiaram já imagens produzidas pela IA, confundindo-as com obra de um artista humano. Todo este blogue pode, aliás, ser um produto de microchips e algoritmos, sendo facílimo, a partir de agora, que aqui surjam textos torrenciais e muitíssimo bem informados sobre os mais variados assuntos. 

Ocorreu-me, por tudo isto, que a mais humana das manifestações consista agora em cruzar os braços e fazer silêncio — como sucede ao narrador do meu último livro. Provavelmente não o leram e fizeram muitíssimo bem. Qualquer traquitana o teria escrito muito melhor e ainda o transformaria num infalível campeão de vendas, que deve ser o objetivo último de qualquer calhamaço produzido para abarrotar livrarias.