terça-feira, 28 de março de 2023

As coisas do meu quintal


"Sou hoje um caçador de achadouros da infância", escreveu Manoel de Barros. "Vou meio dementado e de enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos". 

Talvez por ver cada vez mais de perto a idade sentimental dos poetas, dedico-me, também eu, a remexer a pequena porção de terra onde, se calhar, reencontro o minúsculo e infantil prazer de ver crescer o corpo das plantas do mundo. Impossibilitado do contacto diário com o rude da semeadura e da colheita das batatas, com a aspereza das folhas do milho, tenho recolhido espécimes desencontradas de cactos e suculentas no limitado espaço de um vaso que, para mim, tem o tamanho do mundo. Aí as nutro e mimo, cuidando da qualidade do solo e da textura da luz, a ver se crescem e deitam sombra.

Também não desisti do antúrio que parece estiolar no exíguo de um vaso, ao qual juntei, num arroubo experimentalista, um rebento de árvore-do-papel que talvez um dia ganha raízes e se faça forte e alto, ou que talvez seque sem chegar a medrar. Num copo, iniciei o processo prescrito para a criação de um limoeiro que há-de ainda ser da parentela daquele que ainda há no quintal dos meus avós, um dos achadouros da minha infância. 

É, sim, tudo um pouco dementado e diletante, sem sequer o amparo de uma enxada às costas. Sonho, porém, que os meus minúsculos cactos, amanhados entre os meus dedos, serão, algum dia, um jardim de suculentas, e que as minhas impossíveis árvores aí ficarão para abrigar na sua improvável sombra os meninos que os meus netos são e serão. Talvez perdure, o meu quintal de brincar, mais do que um livro, do que todos os livros que escrevi, e capture outras infâncias para além daquela com que agora me enterneço.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Descamisadas ou não — marcham sempre


Não tomeis a mal, por favor, que vos inquiete em repouso pós-prandial, mas venho, o que é raro, falar-vos de favas, assunto que me ocorreu quando, há pouco, me servia de uma dose substancial com pernil e chouriço (sim, como na canção do José Cid) de porco preto (mas infelizmente sem um naco de bolinha de sangue que as escureça). Ocorreram-me, desde logo, o aveludado e opíparo creme que o meu amigo Carlos Romero produz na Bimby e parcimoniosamente serve às visitas em shots de chorar por mais, e as báquicas favas da minha prima Maria de Lourdes. Mas também a conversa que recentemente entabulei com um chef checo, segundo o qual nós, os portugueses, estragamos a leguminosa cozendo-a em demasia. Existe ainda, em torno das favas, duas outras dissidência que convém esclarecer o quanto antes. A saber: se as congeladas são aceitáveis para o  consumo comum e se se há-de tirar-lhes a camisa ou ingeri-las tal como vêm ao mundo depois que são libertadas da casula. São, como podeis constatar, assuntos do mais elevado significado civilizacional. Mas não me atrevo a impor a ninguém as minhas práticas. Alambazo-me com elas sempre que me apetece e não lhes viro a cara quando são congeladas, vêm à mesa em camisa e demasiado guisadas. Marcha o que houver.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Salvar alguma coisa


Na última frase de Os Anos, a mais recente Nobel da literatura, Annie Erneaux, explica esse livro como uma tentativa de "salvar alguma coisa do tempo em que não voltaremos a estar". Trata-se de uma intenção que, ao fim e ao cabo, resume quase tudo: um poema, um postal ilustrado, uma crónica na rádio, uma fotografia no instagram, uma publicação numa rede social ou um post neste blogue — "e já quase ninguém lê blogues", afiança o Afonso, provavelmente perplexo de ver o pai desperdiçar tempo numa actividade tão improfícua para o objectivo de salvar alguma coisa do instante que acabou de transcorrer e não poderá voltar a ser vivido. É muito provável que o Afonso tenha razão e me fosse mais proveitoso dedicar-me ao Tik Tok ou a alguma rede social que agora mesmo esteja a congregar as novas gerações, a despeito de ter a convicção de ser incompetente em viralidades gerais e em qualquer das redes de que particular e ocasionalmente me ocupe. A partir de uma certa idade, porém, tudo o que fazemos é juntar-nos aos hábitos e usos dos mais novos com o intuito de procurar enganar a passagem do tempo, refreá-la para que não se julgue que já somos parte do passado, simultaneamente velhos e burros de todas as coisas do tempo em que ainda estamos.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Um copo de leite


Afirmam os compêndios médicos, e alguma razão terão, que o cálcio existente no leite é responsável pela formação óssea e dentária, actuando ainda na coagulação do sangue, no movimento muscular, na transmissão dos estímulos nervosos, na regulação dos batimentos cardíacos e no combate à hipertensão. Nada, pois, como iniciar o dia de forma saudável com um grande e sadio copo de leite.

Um copo de leite foi, de resto, o que esta manhã um homem pediu ao balcão do Café Solar, na Avenida da República, em Gaia. Tinha já uma nota de dez euros na mão, para pagar a conta, e tudo parecia cumprir os trâmites normais neste tipo de transação. Sabedora, talvez, de que o homem padece da agora tão comum intolerância à lactose, a empregada do estabelecimento empunhou, porém, um copo de servir finos, abriu e despejou nele um Martini Rosso e acrescentou-lhe a cerveja necessária para completar a dose. Quando saí, o cliente ficou tranquilamente a beber o traçadinho.

Está muito certo que o leite é fundamental à saúde dos humanos. Mas não há nenhuma vantagem em julgar negativamente aqueles que, dispondo já de uma saúde de ferro, necessitam de outros estímulos para começar o dia (e a semana) com outra e melhor disposição.

quinta-feira, 9 de março de 2023

O cadáver de Joaquín Gaztambide usa saltos altos


Gabriel García Márquez, já o saberão, teve a ideia para Do Amor e Outros Demónios quando, em 1949, assistiu à exumação do corpo de Sierva Maria no Convento de Santa Clara, em Cartagena das Índias. Esta história poderá não será tão dramática, nem tão impressionante, mas diabos me levem se não é um caso do caraças.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Duas pessoas a andar de metro


Ignoro a que motivos deve ser atribuído o facto de os transportes públicos do Porto andarem agora tão cheios de gente, tão a abarrotar de distintas pessoas nos seus vai-vens quotidianos. Embora suspeite de que a excessiva proximidade social há-de, não tarda, acarretar algum surto desagradável, agrada-me, seja como for, a variedade humana dos autocarros e das carruagens do metropolitano. Gosto, já o saberão, de ver pessoas e de escutar o que dizem.

Ontem, numa composição do metro apinhada de corpos, ouvi uma pessoa interpelar outra, um desconhecido, e dizer: "Desculpa a inconveniência, mas és muito bonita". A outra pessoa sorriu, disse obrigado e enrubesceu, mas não pude deixar e pensar que talvez aquela frase dita de forma perfeitamente audível no meio de uma multidão apertada no exíguo espaço de uma carruagem possa ter feito a diferença para quem a escutou, ou talvez para ambas.

As duas pessoas — e importa-me sobretudo que fossem duas pessoas, dois seres humanos anónimos em trânsito do trabalho para casa, ou da faculdade para casa — que protagonizaram este brevíssimo diálogo eram ambas do género feminino. Duas mulheres ou duas raparigas ou duas moças, como vossas excelências preferirem, mas duas pessoas, ao fim e ao cabo, interagindo, olhando-se nos olhos e manifestando sentimentos relativamente inocentes.

Existem certamente excelentes justificações para as complicações que impedem as pessoas de se relacionarem normalmente e de se interpelarem quando lhes apeteça, e exageros que motivaram todos os interditos e regras politicamente correctas. Neste dia que o calendário dedica às mulheres, gostava, ainda assim, de manifestar um desejo: o de que pudéssemos voltar a ser apenas pessoas outra vez. Como aquelas duas pessoas a andar de metro.

sexta-feira, 3 de março de 2023

O uso que se dá às pernas

















Einstein garantiu-nos que o tempo é uma ilusão, mas o espaço pode, às vezes, ser também bastante relativo e enganador. Que o diga um dos aposentados que esta tarde iam palestrando no 504, o qual, após explicar ao amigo que andava "a caminhar", acrescentou que pretendia sair do autocarro na paragem da Casa da Música e aí apanhar o metro para ir à Baixa registar o euromilhões "da sociedade". O outro não quis mais nada e aproveitou para troçar de forma a que todos ouvissem: "Então isso é que é caminhar"? Pensei que talvez o mofador não estivesse levando em conta o tempo que o outro demora a percorrer o lapso espacial que haja entre a sua casa e a paragem do 504, entre o autocarro e o metropolitano, da estação seguinte à loja das cautelas e mais o sempre estafante regresso ao lar, que seria já, muito provavelmente, pela melancólica hora do entardecer. Sem pretender envolver-me na conversa, aproximei-me discretamente da porta traseira a fim de não dar parte de madraço. Saí da viatura assim que pude e fui caminhando diante do trocista como se estivesse a disputar os 15 quilómetros marcha, disposto, seja como for, a demonstrar que não há espaço ou tempo que me atemorizem, e que devo dar às pernas o uso sadio para que foram criadas. A mim não me apanham a mandriar.

quinta-feira, 2 de março de 2023

"Num chão de balastro, sob um céu de catenárias"


Algumas palavras irrompem nos interstícios do quotidiano e depois permanecem comigo o dia inteiro, regressando e regressando — por exemplo a palavra balastro, escutada na crónica de hoje do Fernando Alves. "Num chão de balastro, sob um céu de catenárias" é um poema radiofónico que me ficou a retumbar na cabeça como o campanário da igreja de uma aldeia.

Por falar em poemas, guardei na memória a impressão de vários verso de José Pedro Leite no livro Onde Morrem os Barcos; e também aquele poema que diz: "Passei todo o dia cumprindo pequenas tarefas:/cortei as unhas e o coração/arrumei papéis/cozinhei algo de que já me não lembro/li e fumei muito/dei a beber aos pássaros da minha solidão//Senti/como uma pedra/o peso da tua ausência//Mas/falava de pequenas tarefas/cozinhei papéis/arrumei livros de que já me não lembro/até que as unhas se me tornaram pássaros//fumei solidão/e bebi o que me restou do coração".

A fotografia anexa é da esquecida linha ferroviária que vai do Entroncamento a Badajoz, na qual não há catenária alguma, mas onde ainda se escuta o pio dos pássaros e se sente o cheiro do óleo caído no balastro enquanto as automotoras interrompem o silêncio da planície estiolada.

Entre as árvores da Pasteleira



Quase todas as páginas matutinas dos jornais na internet afiançavam que a PSP havia detido, esta quarta-feira, quatro pessoas no Bairro da Pasteleira Nova, no Porto, onde foram também apreendidas mais de oito mil (oito mil!) doses de droga. Poder-se-ia, por isso, imaginar que o mercado se ressentiria desse contratempo logístico e que não haveria hoje estupefaciente para abastecer a clientela habitual do lugar. Ideia tão tola. 

Às quatro da tarde, quando por lá passei, cerca de uma vintena de lúgubres homens estavam já reunidos junto às bucólicas árvores do Parque Municipal da Pasteleira, arrimados a sobreiros e eucaliptos, injectando-se com o que houvesse e onde podiam, alguns até nas virilhas, de costas voltadas para o trânsito, ao qual jamais atrapalham. Para aqueles que enriquecem vendendo tais venenos, oito mil doses são nada. Não chegam a atrapalhar-se e o negócio continua a prosperar, destruindo, dose a dose, a sua vasta legião de marginais.

Um estudo publicado em 2019 pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência estimava que os europeus gastam anualmente 30 mil milhões de euros com os produtos deste tráfico. Trata-se, com efeito, de muito guito; muito mais guito do que aquele que sou sequer capaz de imaginar, embora muito pouco seja avistado entre a flora do Bairro da Pasteleira ou nos recônditos do Bairro do Viso, aonde só vão ter os deserdados do negócio e os seus contribuintes líquidos. 

As grandes fortunas andam por aí de avião particular, banhando-se nas águas cálidas dos emirados, na Tailândia, nas Baleares, nos paraísos artificiais da Indonésia, acelerando em grandes bólides e ajudando a manter o crescimento de várias economias. Ninguém lhes toca e não convém, por isso, que o façam. Também nunca se injectam nas virilhas à vista dos utentes dos transportes públicos.


sábado, 25 de fevereiro de 2023

T.C. Elimane e o "Labirinto do Inumano"

 


Tenho lido com o vagar possível A Mais Secreta Memória dos Homens, o romance de Mohamed Mbougar Sarr que venceu o Goncourt de 2021 em França. Trata-se de um livro notável e exemplarmente construído, enquadrável num dos sub-géneros literários da minha predileção: a ficção sobre livros e autores ficcionais. 

Mais concretamente, Diégane Faye, um jovem escritor senegalês em Paris, segue o rasto de T.C. Elimane, encoberto autor do quase mítico Labirinto do Inumano. Tal como Brigitte Bollème e Marème Siga D. antes dele, Diégane sente o fascínio de um romance que valeu ao seu autor o epíteto de "Rimbaud negro". Mas Elimane, um preto, não podia ter escrito um livro tão bom e foi publicamente acusado de plágio e falsificação, e desapareceu misteriosamente no nevoeiro do mundo sem um gesto para se defender, enquanto os seus detractores iam morrendo inexoravelmente.

É, sim, um romance sobre o poder da literatura, a sua magia e a perdição a que conduz, e também sobre as redenções a que abre caminho. Podendo, leiam-no.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

A breve recordação de um sonho

Um homem sonha com uma casa. É uma casa ampla, simples e envelhecida, com móveis antigos e várias divisões organizadas em torno de uma grande cozinha. Não se assemelha a nenhuma das casas que o homem conheça, onde já tenha estado, mas parece-lhe familiar. No sonho, o homem tem não só a sensação de conhecer a casa e a sua localização exacta, num lugar que conhece bem, como também julga ser o seu proprietário de papel passado e contas saldadas. Mas a casa não existe. Talvez o reconhecimento resulte de um truque do subconsciente ou de uma recorrência do próprio sonho. Talvez o homem já tenha sonhado outras vezes com esta mesma casa, que é apenas, percebe depois, parte de uma casa, ou esta casa seja como um arquétipo ou um problema que urge resolver. Na casa do sonho não se vê qualquer cama, nenhum quarto, mas o homem constata que a casa dispõe de sete sofás estafados distribuídos pelas várias assoalhadas, que são apenas três ou quatro, e que há um supermercado a poucos metros de distância, o que lhe parece bastante conveniente, embora, para ali viver, o homem fosse obrigado a transportar para a casa do sonho tudo aquilo que lhe falta: alguma cama, um frigorífico, a mesa para as refeições e talvez algo mais. Ser-lhe-ia fácil ir ao supermercado, mas teria muitíssimo trabalho a tornar a casa habitável — para que, como num poema do Manuel António Pina, pudesse entrar pela primeira vez na sua casa e deitar-se pela primeira vez na sua cama. E também eu "faço coisas que não devo" e imagino-me proprietário de problemas que não existem e que se resumem a ser "a breve recordação de um sonho" ou a puríssima forma de uma casa ou de uma vida que tarda a concretizar-se. Acordo, pois, como em outro poema do Pina, expulso pelos sentidos do meu sonho, do qual "agora só me lembro pelo lado de fora".

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Curta das Correntes d'Escritas

O velho editor adormeceu na primeira fila da conferência. A mulher apertou-lhe a mão duas vezes, ao de leve, para acordá-lo antes de que mais alguém notasse.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A tragédia de não saber estar calado


Há as tragédias que passam na televisão a todas as horas e aquelas de que os media se esquecem e de que nos esquecemos por não ser possível estar sempre a pensar em misérias, guerras, devastações, escândalos e desgraças. Mas as catástrofes esquecidas não desaparecem do mundo por mero exercício da vontade ou por distração. No México, por exemplo, há vinte e oito mil mulheres desaparecidas e provavelmente mortas desde há muitos anos — como num romance de Roberto Bolaño —, abandonadas em algum lugar do deserto sem que milhares de famílias saibam o que lhes sucedeu e estejam agora a cortar estradas para forçar as autoridades a agir. Também não desaparece, por desaparecer dos noticiários, o drama das migrações, a propósito do qual o seríssimo edil de Lisboa afirmou hoje que não aceita lições de ninguém, pois já foi emigrante e é casado com uma emigrante — assim demonstrando a tragédia que há em não saber estar calado. Mal comparando, Moedas faz lembrar Donald Trump, aquele que queria um muro na fronteira Sul dos Estados Unidos para evitar que os assassinos e violadores (os sul-americanos) continuassem a invadir o seu quintal, condenando-os à morte na berma de alguma estrada do caminho. Algo que moedas, o emigrante, jamais saberá o que é.

Haiku de São Valentim

Ela entregou-lhe a bengala,

ele ajeitou-lhe o xaile

nas costas.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Seis velhos ao sol

O domingo amanheceu frio na vila. Está quase sempre frio de manhã, talvez pelo vento agreste que sopra e sopra. Antes de me fazer à estrada de regresso à cidade, fui tratar do café matinal já depois de o joelho manco me ter traído ao descer as escadas. Coxeava, pois, quando passei junto ao pelourinho onde seis velhos estavam perfilados, sentados nas escadas de granito, aquecendo-se ao sol e trocando raras palavras. Coxeava ao atravessar a Carreira de Cima a caminho da pastelaria e do primeiro café do dia — e por isso sentindo-me velho, velho e manco e lento como outro ancião qualquer, avançando com passos medidos em direcção ao dia em que, agarrado a um cajado, também me sentarei nos degraus do pelourinho com os velhos do meu tempo, aquecendo-me ao sol.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Os olhos de Júpiter


Um grupo de cientistas descobriu doze novas luas orbitando Júpiter, planeta que conta, afinal, com 92 satélites naturais pendurados no seu povoadíssimo céu, nele rodando e rodando há milhões e milhões de anos. Se lá houvesse, se lá houver um olho que seja, um olho capaz de perscrutar o espaço acima de si, há-de ver horizontes povoados de clarões esféricos, experimentando, se calhar, um desassossego gémeo ao dos distantes animais da Terra, porém multiplicado — cem vezes multiplicado. Ou talvez o feitiço dessas 92 luas seja uma inquietação constante, um frémito tão descomunal que a ele sucumbiriam, como fulminados, todos os olhos de todos os bichos que pudessem germinar em Júpiter, incapazes de suportar tanta melancolia e tanta excitação, tamanho alevantamento, tanto desvario dos sentidos, tanta desordem e perturbação. Talvez todos os olhos de Júpiter sejam, por isso, cegos.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Dois cães muito ordinários


Podia, com efeito, ter-me dado para pior. Mas trata-se de um passatempo relativamente inócuo, apesar de tudo. Sendo há muito um apreciador do humor gráfico, criei esta semana a série 2 cães muito ordinários, cujos quadradinhos podem ser vistos aqui. Não sei quanto tempo me durará a mania de que posso ser cartoonista sem saber desenhar um fósforo, mas, se gostarem, divulguem. Caso contrário, façam como de costume e ignorem(-me).

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O direito a perder-se


Combinando há dias um encontro com um amigo, disse-me ele que teria de se orientar pelo mapa para chegar ao local do prândio, pois, acrescentou, não usa GPS — apesar de ganhar a vida calcorreando estradas e caminhos para encontrar as histórias que depois nos conta. Abdicar, neste desgraçado ano de 2023, do uso da tecnologia de orientação constitui, pareceu-me, todo um programa de vida e não apenas uma opção justificada pela frase "gosto de mapas". Ignorar o GPS é, afinal, uma forma de reivindicar o direito a perdermo-nos e, perdendo-nos, a encontrar o inesperado e o insignificante assombro que às vezes se acha nos becos sem saída, nas estradas sem destino, ao fim de um caminho de macadame. Estar perdido há-de ser um modo absolutamente fulminante de nos encontrarmos e conhecermos o que não sabíamos existir, e tantas vezes aqui, cá dentro, no reduzido espaço interior do corpo em que vamos sendo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Mais um maravilhoso calaceiro

 


Zeno Cosini não vai conseguir deixar de fumar — esqueçam lá isso. Nem vai deixar de desejar a mulher do próximo, a saúde do próximo ou o seu talento para o comércio. Para trabalhar não serve, pois não sabe "fazer outra coisa senão sonhar". Também não o vão encontrar nos tiquetoques desta vida, nem nos podcasts de (suposto) incentivo à leitura, nas conferências tedx, nos cursos de empreendedorismo ou nas stories dos instagramers dedicados àquilo a que agora se considera literatura, desde logo porque a sua "consciência" é literatura a sério e dá trabalho ler até ao fim sem algo que nos ligue à realidade modorrenta, empática, ou sem os plot-twists que entusiasmam os influencers da treta. A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, é, todavia, um livro da mesma nobre família de A Montanha Mágica, de Bartleby, o Escrivão, ou de Oblomov,  delicioso de ler e de acompanhar, a despeito do excesso de vírgulas a que acabamos por nos habituar ao fim de algum tempo. 

Zeno Cosini é um maravilhoso mandrião, avesso a toda a actividade e procrastinador antes da invenção da própria procrastinação. Um maravilhoso calaceiro, é o que ele é, mas também muito astucioso e até arguto e visionário. A propósito da guerra mundial que então grassava na Europa, reflecte: "Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem como todos os outros, no segredo de um quarto deste mundo, inventará um explosivo incomparável, em relação ao qual os explosivos atualmente existentes serão considerados brinquedos inofensivos. E um outro homem, também como todos os outros, roubará esse explosivo e irá até ao centro da Terra para o pôr no sítio onde o seu efeito seja maior. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, restituída à forma de nebulosa, errará nos céus livre de parasitas e de doenças".

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Tanto perdão talvez não redima os pecados tantos


 O título de uma notícia que acabo de ler assevera que o recinto festivaleiro das jornadas mundiais da juventude vai contar, para além do ostensivo e milionário palco, com um Parque do Perdão composto por 150 confessionários. Há-de ser uma coisa muito impressionante e capaz de assegurar a confissão em doses industriais, como um fast-food da redenção e do arrependimento hipócrita, pronto-a-vestir e despachado em ritmo expresso, com três padres nossos e um rosário de avé-marias. Assim se assegurará que os crentes estarão limpos e puros para deglutir a comunhão que, conforme facilmente se imagina, será ministrada em doses cavalares no pantagruélico recinto. 

Para ordenar o tráfego dos pecadores, sejam meros glutões ou indecentes cobiçadores, talvez o confessódromo venha a contar com um sistema de semáforos luminosos semelhante ao que há alguns anos vi na catedral de Compostela, não vá algum penitente mais esbaforido sentar-se no colo de outro que se lhe tenha adiantado na admissão de culpa — e, vendo o que vai na procissão, não hão-de faltar arrependidos às resmas, revelando no cerimonial segredo as mais mesquinhas tentações, da trivial ostentação à mortal vaidade, dos judiciais perjúrios às faltas veniais, da cobiça capital à quase infantil masturbação ou ao assassinato político. Mais depressa e facilmente se lava, afinal, a consciência desta gente toda do que o diabo demora a piscar-lhes um olho. 

Mas 150 confessionários, senhores, é coisa para carecer de muita mão-de-obra qualificada, eficazmente organizada em turnos e levadas em conta as devidas pausas para o almoço, jantar e lanche, ou para a satisfação de outras humanas necessidades. Tal como na retórica pergunta em que se procura saber quem policia a polícia, e tendo em conta a impureza que vai nas hostes da igreja, talvez seja caso para perguntar, também nesta circunstância, quem confessará os que vão remir a multidão dos pecadores?

Imaginando o belo espectáculo que se comporá no chamado Parque do Perdão, atrevo-me a propor que se providencie a contratação por ajuste directo de um ou mais pintores de fantasias morais, aos quais caiba ilustrar a imundice que ali irá desaguar, desenhando-a ao jeito de Bosch. Um evento desta grandeza, como há dias dizia o edil da capital, merece ser devidamente documentado para memória futura e regozijo dos turistas que, mais tarde, venham visitar os museus da espantosa cidade onde ocorreu tão monumental evento.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Os reis da selva

 


Três em cada quatro militantes de um partido cujo nome não escrevo sob nenhum pretexto consideram que há raças mais trabalhadoras do que as outras. Suponho, todavia, que não se refiram aos huskies siberianos ou às renas da Lapónia, forçados a puxar trenós sobrecarregados de gente gorda, sob condições climatéricas bastante adversas. Os resultados de tal inquérito, a serem fiáveis e rigorosos, servem apenas para demonstrar que há partidos cujos militantes são, em média, mais imbecis do que os dos outros.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Matear no metro


A hora de ponta é a hora de ponta, anónima corrida entorpecida atrás do pilim que paga as contas de cada dia. Mas até nesse redemoinho é possível o benefício de uma pausa ou o assombro da suave excentricidade. No metro esta manhã, quando nele entrei, reparei na moça com a cuia e a bombilla na mão, mateando entre a multidão dos utentes como se banhada por uma luz diversa — talvez a luz de Buenos Aires, talvez a luz de Mendoza. Lembrei-me de Inti, a artista visual argentina que comigo partilhava a bávara varanda da Villa Waldberta, a qual, às vezes, aparecia também mateando e cumprindo a ancestral tradição dos tupi e dos guarani, sorvendo o suco da diurética, antibiótica e emoliente yerba. Lembrei-me também, e como não, de Oliveira, o personagem da Rayuela de Cortázar, que temia que em Paris se lhe acabasse a erva. "O meu único verdadeiro diálogo é com este jarrito verde", pensava Oliveira, e talvez o pensasse também a moça do metro esta manhã, mateando e cogitando com os seus botões, sozinha e cheia de graça no meio de tanta gente.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Viver (e morrer) na praia


Depois da borrasca, a praia enche-se de restos de madeira que as cheias dos rios e as bravias marés transportaram e depositaram no areal, no sítio onde o oceano se dobra e enrola uma e outra vez. Caminhando à toa para espantar o caruncho, peripatético que eu sei lá, pergunto-me onde cresceram e que vida tiveram as árvores cujos troncos e galhos agora ali estão feitos lenha e lixo; que pássaros pousaram nos seus ramos e se piavam ou gorjeavam; se vicejaram em flores e fruta — coisas, enfim, em que se medita quando se não tem mais em que cogitar. 

Trazido ao areal às toneladas, esse resto de pomar e bosque organiza-se também de acordo com a lógica aleatória das ondas e do relevo da costa. Esta tarde notei, porém, que havia nas praias da Foz algumas construções precárias dessa lenha empilhada, formando como toscos abrigos de uma espécie animal que houvesse abandonado os lares à pressa. E li também, logo após, a notícia da mulher de 66 anos que há quatro meses vive com um filho de 44 na praia de Matosinhos, não num daqueles condomínios de estadão construídos à beira-mar, mas numa tenda montada no areal por falta de dinheiro para alugar ao menos "um quartinho".

Considerando o desvario pornográfico do chamado "mercado imobiliário" (essa selva de "investidores" aonde só os mais endinheirados sobrevivem), não custa supor que não tardará muito para que as cabanas de lenha montadas com o lixo que deu à costa acabem acolhendo famílias inteiras de desabrigados, deserdados e humilhados do estado a que isto chegou. Ah, mas talvez um dia a bolha rebente ou os habitantes da praia sejam tantos e tão desesperados que atravessem a avenida marginal para partir tudo o que nela encontrem, cabeças incluídas.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Método infalível para avaliar a pureza de ministros, secretários de Estado, autarcas, deputados e outros gestores da coisa pública


Pela minha janela não se vê agora senão outras janelas e uma árvore nua plangente, vergando os ramos à intempérie. Salvam-me do chumbo dos dias e da histeria estéril de quase todas as notícias os Sinais do Fernando Alves na TSF, que ainda ontem almoçaram uma alhada de cação em Gáfete e cearam em Alpalhão — secretos de porco no Regata, detalhava o texto. Logo se me aguou a boca de recordar o arroz de cachola com que ali me alambazo às vezes, a caminho de Castelo de Vide, servido com costelinhas fritas, farinheira frita, chouriça idem, e que venha o colesterol e escolha.

De véspera, painelando num canal de televisão, João Soares, ex-alcaide e ex-ministro com queda para oferecer camilianas bengaladas, sugeria que, mais do que um questionário para aferir a idoneidade dos governantes, é necessário que os políticos nacionais e locais sejam sujeitos a um teste de cultura geral que garanta que leram Os Maias, que sabem quantos cantos tem Os Lusíadas e que, enfim, não são burgessos destituídos do conhecimento da História e de alguma Filosofia. Pareceu-me um plano ambicioso e que, se me não engano, bem depressa deixaria o país à míngua de ministros, deputados e autarcas. 

Mas digo mais: ninguém havia de poder ser ministro ou secretário de Estado sem provar um arroz de cachola, uns molhinhos, uma feijoada de butelo, uns pezinhos de coentrada, uma cacholeira frita, umas iscas de bacalhau, um sarapatel, uma salada de bucho, uma bordalesa de lampreia, um naco de cabeça de xara, um arroz de carqueja ou um caldo de beldroegas. Afirmo-o, se calhar, por ser quase hora de almoço e me ter vindo à memória, outra vez, o licencioso arroz de cachola que se come no Regata, mas também porque creio que gente capaz de devanear com tais acepipes não há-de ser susceptível à tentação de outros tachos e sinecuras.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os patriotas


"Aqui não tem bandido, nós somos patriotas", dizia uma mulher que participou ou apoiou a selvática invasão dos edifícios públicos brasileiros que simbolizam o poder democrático daquele país. Usava, com efeito, a camisola da seleção nacional e talvez tivesse empunhado, em algum momento, uma daquelas bandeiras onde se lê a máxima "ordem e progresso", embora não faça a mais pequena ideia sobre o que significam a ordem e o progresso. Rigorosamente intoxicados por discursos de ódio que parecem decalcados do 1984 de George Orwell, acreditam que todos os do seu bando são puros e inocentes patriotas e que todos os outros são bandidos, por mais que a realidade o desminta. Creio que também estariam convencidos de que todos os que votaram contra Bolsonaro são extraterrestres se aquele imbecil fascista tivesse repetido muitas vezes essa mentira. Patriotas e desfasados do mais elementar senso comum, são legião e sentem-se aconchegados na bárbara multidão vestida de verde e amarelo. 

Se ser patriota é destruir propriedade pública património da humanidade (como fizeram os terroristas da Síria, do Afeganistão e do Iraque) e renegar a vontade democrática expressa em eleições livres, há-de ser preferível ser apátrida e execrar todas as nações do mundo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Um raminho de salsa


Pouco se justifica entrar num supermercado para comprar meia-dúzia de cebolas e ter de passar demasiados minutos na fila para pagar numa das caixas. Podendo, vou antes ao Bolhão — não por estar renovado e limpo, mas por manter velhas senhoras que me perguntam se quero "alguma coisinha" quando paro diante dos balcões onde se exibem pencas e nabos, grelos e batata nova. Esta manhã, escolhidas e pesadas as cebolas, a vendedeira disse-me que custavam um euro. Certinho?, perguntei para indicar que percebera o arredondamento abusivo. Quase, disse ela. E agarrou num raminho de salsa que juntou às cebolas para me dar o troco.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Os textos mais lidos do Teatro Anatómico em 2022

 


Muito obrigado a todos os leitores que persistem em continuar desse lado. Desejo-vos um ano de 2023 cheio de boas leituras.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

2022 não foi um ano mau


Não me posso queixar. A ter de fazer um balanço pessoal do ano que amanhã termina,  devo concluir que não o passei mal de todo. O mundo não está ameno, repleto das iniquidades de sempre, das guerras e das injustiças do costume, dos desvarios e das canalhices que a espécie não é capaz de evitar. Mas 2022 não foi um ano mau. Recordo uma cabritada na Póvoa de Varzim com amigos, a chocalhada da Páscoa de Castelo de Vide, um novo livro e vários ocasos lindos de morrer; um mergulho no mar de Portimão, belas corridas e sessões públicas difíceis de esquecer. Houve festa na Baixa pela conquista do campeonato nacional de futebol. Dei as primeiras aulas da minha vida, comi e bebi bons vinhos, e tive novos trabalhos com que me entreter. Brinquei e ri com o meu neto, e retribuí como pude o carinho que as minhas pessoas me dedicam. Também conquistei o direito a passar dois meses e meio na Baviera, diante do lago Starnberger e dos Alpes, e a cumplicidade de novos amigos. Terminei outro livro. Caminhei na neve e no gelo. Também perdi tempo e pessoas, como qualquer um, e irritei-me sem necessidade. Mas amanhã, quando o ano estiver terminando, erguerei para 2022 um brinde convicto com o meu copo meio cheio. Obrigado.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

"O que eu preciso é de uma pistola para dar um tiro na cabeça"


Talvez se digam coisas muitos significativas nos transportes públicos alemães. É possível que conversem sobre Filosofia e recitem Hölderlin, ou que profiram grandes e definitivas tiradas que ficariam bem em qualquer  das pretéritas crónicas do autocarro, as quais outrora aqui compuseram uma longa e louca série de textos extravagantes. Mas, como não entendo o que por lá dizem, vejo-me constrangido a considerar que não há autocarros como os do Porto. Talvez, com efeito, já sentisse falta de ouvir os utentes do 200 perorar sobre certas e determinadas evidências científicas, desde logo aquela que demonstra que o clima mudou "desde que começaram a mexer lá em cima". "Sim, na Lua", acrescentou logo outro utente, segundo o qual o satélite natural da Terra "comanda o tempo que faz".

Porventura mais dramática foi a subida a bordo de um bigodudo octogenário na paragem do Planetário. Após uma breve corrida à chuva que o deixou aflito, entrou e sentou-se declarando que "a velhice não tem interesse nenhum", frase que atribuíu, não a Hölderlin, mas a Miguel Torga. Acrescentou outras lamúrias, ao que logo duas senhoras lhe responderam, a fim de o animarem, que o importante é viver um dia de cada vez e que, enfim, se deixasse ir andando. Desolado como um dia de chuva, o homem disse temer que um dia destes, ao acordar, não fosse já capaz de se mexer, ao que ajuntou uma declaração de grande efeito entre o mulherio: "O que eu preciso é de uma pistola para dar um tiro na cabeça".

As mulheres, está bom de ver, acudiram a procurar erguer-lhe o ânimo. A que estava mais próxima até lhe perguntou a idade (87) e logo concluíram que ela era mais nova (82). E então, como tocado por um raio de sol, o rosto do homem iluminou-se com um sorriso: "Ainda tem marido? É viúva?", quis saber. Ela informou que nunca tinha casado e o combalido octogenário manteve o sorriso quase sedutor e, agora, uma conversa menos lastimosa e em voz baixa. Assim foram mais um pedaço, até que a senhora de cabelo de prata teve de sair da viatura. Até à Cordoaria, que eu bem o vi, o homem, outra vez a contas com os seus achaques, as suas solidões, voltou a entristecer e a fixar o olhar nas chuvosas e pardacentas ruas do Porto, outra vez mais sorumbático, se fosse possível, do que esta quarta-feira de Dezembro.

sábado, 17 de dezembro de 2022

O último cibergrama da Baviera


Este é o meu último cibergrama a partir do país dos bávaros. Daqui a algumas horas farei a mala, fecharei a porta e sairei para caminhar na neve uma última vez, lento e nostálgico como Walser quando saía do sanatório. Depois tomarei o primeiro S-Bahn para a cidade e, daí, para o aeroporto. Imagino que farei a viagem com o rosto voltado para os bosques que a neve tornou ainda mais belos e misteriosos, dardejando de gelo e bruma. Procurei, deste modo, reter estas paisagens no precário arquivo da memória.

Ter estado a residir na Villa Waldberta a convite do município de Munique constituiu um privilégio provavelmente irrepetível. O próprio programa da residência internacional de artistas é bastante particular: concedem aos hóspedes tempo para criarem aquilo que muito bem entenderem, para que apenas pensem no assunto ou para o que lhe dê na real gana. Propus-me, todavia, terminar um livro em que trabalho há quase três anos e empenhei-me em cumprir a minha parte do acordo. Está terminado. Ou assim espero. Talvez um dia possa ser lido, mas já pouco depende de mim.

Ter aqui estado permitiu-me escrever, reescrever e cortar, melhorando um pouco o texto que havia escrito e acertando detalhes em que antes errara. Compreendi que o personagem central do romance não podia ter vivido em Planegg, mas mostraram-me um lugar que se adequava melhor ao enredo. Pouco alterei, todavia, daquilo que havia escrito longe da Alemanha, apenas com os olhos da imaginação. Também vi centenas de corvos, ora crocitando, ora voando, ora debicando o seu alimento, e tomei consciência da presença significativa que esses pássaros têm no livro. Mas não sei explicar porquê.

Este foi, pois, um período excepcional, assim como uma interrupção na vida comum, à qual agora regressarei — às ninharias do quotidiano e às minhas pessoas. Espero, em todo o caso, não perder o rasto ao Filipe, ao Igor, à Inti e à Sarah, que comigo partilharam o privilégio de habitar o castelo, nem ao Florin e à Daniela, à Marie-Amelie e ao Martin.

Salvo raríssimas excepções, os textos publicados neste blogue ao longo dos últimos dois meses e meio não teriam sequer existido sem o tempo de que dispus na residência internacional de artistas da Villa Waldberta/Artists in residence Muniche. Estou ainda grato àqueles (poucos e bravos) que foram lendo o que aqui escrevi, sem os quais tudo isto faria ainda menos sentido.