Recorro à memória sobressalente, à erudição de pacote, para confirmar que a expressão «pregar aos peixes» está de algum modo relacionada com o texto satírico que o Padre António Vieira dirigiu à incorrigível corrupção dos homens. Nesse sermão, dito de Santo António, se critica, entre outras falhas, o facto de os homens serem tão surdos como os peixes aos argumentos que lhes dirigimos, tirando partido de uma tradição segundo a qual o santo de Pádua ou de Lisboa teria o hábito de, em Rimini, pregar aos peixes pelo facto de as pessoas o não quererem escutar. «Pregar aos peixes» significa, pois, desperdiçar tempo e saliva, actividade muito semelhante, afinal, àquela que aqui se executa. Neste ano sem graça de 2025, a redacção destas breves notas é ainda mais inútil do que a proverbial pregação aos peixes. Assemelha-se, bem vistas as coisas, a um murmúrio ecoando num aquário vazio.
quinta-feira, 26 de junho de 2025
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Animais imaginários
Um guia na Praça dos Leões explica aos turistas que os animais representados nas estátuas da fonte responsável pela designação popular do lugar não são realmente leões. Trata-se, com efeito, de grifos, seres mitológicos que misturam os grandes felinos e as águias. Diante dos jorros da água, várias moças ensaiam poses fotogénicas: levantam um pé, rodam o torso, sorriem. Parecem garotas comuns, mais ou menos indistintas, mas, depois de filtradas e tratadas pela IA, hão-de parecer, nas fotografias, criaturas dotadas de uma impossível beleza. Quimeras.
quarta-feira, 18 de junho de 2025
Alto passo
Havia já entregue à editora o original do livro que se chamaria A Última Curva do Caminho, quando, em Agosto de 2021, foi publicado em Espanha Los Vencejos/O Regresso dos Andorinhões, do grande Fernando Aramburu. As coincidências entre as duas ficções - um homem decide morrer e prepara-se para isso - são quase tão óbvias quanto as enormes diferenças que os distinguem. Mas dificilmente se explica, sem o auxílio de outras ciências, a confluência existencial (digamos assim) entre dois autores separados por quase tudo.
Agora que, apenas um pouco tarde, li O Regresso dos Andorinhões, é inútil atormentar-me com estultas comparações deste com o meu modesto A Última Curva do Caminho, ou com a insensatez de tantos outros impulsos literários (mea culpa). Ocorre-me, ainda assim, que talvez me fosse aconselhável cuidar mais vezes de observar o exemplo do narrador d'A Divina Comédia antes de ceder à tentação de viajar ao outro lado da pobre realidade. Diz ele: «(...)poeta que me guias,/vê se é minha virtude tão potente/antes do alto passo a que me envias».
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Sobre a utilidade dos sonhos
«Sonhar - escreveu Mia Couto no romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo - é um modo de mentir à vida». E acrescenta: sonhar é «uma vingança contra o destino, que é sempre tardio e pouco».
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Moscas varejeiras
Acabara, esta manhã, de constatar que também as moscas varejeiras não andam bem da moleirinha - depois de, no espaço de poucos minutos, dois exemplares terem caído quase inanimados no teclado do computador -, quando uma amiga romena me pergunta de que lado estou na relevantíssima disputa que agora anima os dois ex-amigalhaços da Casa Branca. Sendo ela da terra de Vlad, o Empalador, lembrei-me de que não me amolaria se acabassem ambos como o mergulhador que, nas cenas iniciais de Magnolia, termina enfiado do topo de uma árvore de grande porte. Alimentam-se, os dois tipos, do mesmo petisco que atrai os insectos, mas fazem muito menos falta do que as moscas varejeiras.
quarta-feira, 4 de junho de 2025
Anarquia de direita
A expressão «anarquista de direita», que hoje li num título do El País, só aparentemente encerra uma contradição nos termos, para além de descrever com bastante exactidão a actividade de um certo e determinado partido político muitíssimo votado em Portugal. Os seus dirigentes reclamam ser «de direita radical» e conservadora, mas comportam-se sem a mínima civilidade; mentem, enganam, falsificam, roubam e etc., de algum modo como se o conservadorismo lhes desse para a anarquia. Nem sequer os próprios órgãos do partido cumprem as regras e as leis mais elementares, apelando, ainda assim, a gente que, como Patachula, um dos personagens do romance O Regresso dos Andorinhões, resolve votar no Vox, partido que detesta, «só para lixar o pessoal».
Se quisermos vê-la por outra perspectiva, a anarquia de direita faz até bastante sentido. Foi graças à anarquia e às guerras selvagens de outrora que «os de direita» se apropriaram da propriedade e dos bens alheios, constituindo a nobreza, o clero e a burguesia que concentraram quase toda a riqueza produzida pelos papalvos. Os «de direita», caso não tenham ainda percebido, não são, pois, coisa alguma, nem de direita, nem anarquistas, nem marcianos. Ou melhor: para conquistar o poder, comportam-se como anarquistas selvagens. Quando o alcançam, e para conservá-lo, passam a ser conservadores. E o pessoal "que se lixa", para seguir a expressão de Patachula, é sempre o mesmo - aquele a que o jargão popular chama "o mexilhão".
Marcelo, o lamentável
O presidente da república tentou hoje silenciar uma cidadã que, aproveitando a presença de jornalistas na abertura da Feira do Livro de Lisboa, exibiu uma folha A4 na qual escreveu a frase «Há genocídio na Palestina», procurando convocar cidadãos para uma manifestação dedicada a este assunto. Quando a cidadã se calou, e Marcelo lhe apertou o gasganete, logo se percebeu que o PR não tinha nada de substancial para dizer sobre a questão de fundo. Nem sim nem sopas. Repetiu apenas as minudências diplomáticas que têm servido para iludir e pactuar com a limpeza étnica em curso no território palestiniano.
Longe vai o tempo, pois, em que os crédulos viam em Marcelo Rebelo de Sousa um presidente afectuoso. Acabará o mandato de um modo penoso e lamentável, sendo o principal patrocinador do crescimento eleitoral de um partido neofascista e arruaceiro. Se, há um ano e meio, não tivesse decidido atirar uma maioria absoluta para o lixo, pactuando com algo muito semelhante a um golpe de estado jornalístico-judicial, talvez (pelo menos) este desastre pudesse ter sido evitado.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Um simples gesto de elegância
"O homem, por muito que lhe custe, é um produto químico que está sozinho. Eu estou sozinho e há estrelas, nebulosas e planetas. Nada disso me impedirá de me comportar como uma criatura moral até ao fim dos meus dias, nem que seja só por um simples gesto de elegância. Ou por respeito à superfície poética do mundo".
Não aprecio a expressão "criatura moral" (prefiro a palavra "ética"), mas pareceu-me que este excerto de O Regresso dos Andorinhões, de Fernando Aramburu, dialoga muitíssimo bem com alguns dos posts anteriores. Parecerá patético, nos tempos que correm, agir por respeito à "superfície poética do mundo", mas alguma coisa nos tem de distinguir dos crápulas, dos manipuladores e dos cínicos. Que seja, pois, a mais elementar elegância.
quinta-feira, 29 de maio de 2025
Afirmar o óbvio ululante
Ontem, num noticiário da televisão, ouvi um migrante português regozijando-se pelo facto de um determinado partido político ter "varrido" outro partido político do círculo eleitoral europeu. Fê-lo no mesmo tom agressivo e colérico usado pelo líder do tal partido vencedor quando se refere aos outros migrantes (aqueles que, não sendo portugueses de nascença, querem trabalhar em Portugal; curiosamente não se lhe escuta uma palavra sobre aqueles que "agitam a bolha imobiliária" e impedem os nossos filhos de terem acesso a uma habitação).
Considerando o ponto a que as coisas chegaram, já não deve espantar-nos que migrantes votem entusiasticamente em partidos anti-migração. Basta ver que só entre 1,7 e 2,2% dos habitantes dos EUA são nativos ou descendentes de nativos, embora já por duas vezes os migrantes (e seus descendentes) tenham sufragado um presidente xenófobo e anti-migrantes.
O paradoxo (não apenas aparente) parece explicar-se pelo facto de os referidos indivíduos serem já incapazes de, sequer, processar os juízos racionais mais básicos. Todavia, de acordo com a horda de comentadores políticos encartados, não se deve (agora) afirmar o óbvio ululante. Ou seja, que as pessoas que parecem destituídas de cérebro são, muito provavelmente, pessoas destituídas de cérebro.
De acordo com o novo politicamente correcto, devemos, isso sim, procurar compreender as extravagantes razões que levam 1,4 milhões de pessoas a votar num partido que tem como principais argumentos a ira, a propagação de mentiras, a manipulação de massas e a hostilização dos mais desprotegidos de uma sociedade. Se calhar vão, um dia destes, tentar também convencer-nos de que devemos fazer um esforço para procurar compreender os motivos que levaram os nazis a executar o Holocausto e Israel a planear o genocídio dos palestinianos de Gaza.
Do mesmo modo que, na opinião de um académico israelita entrevistado pelo Expresso, "não se pode vender o Holocausto para matar outro povo", também não é admissível que eventuais frustrações individuais sirvam de pretexto para transformar um país numa esterqueira.
quarta-feira, 28 de maio de 2025
Uma simples coincidência
Talvez o vício da leitura seja uma espécie de autismo; uma forma de isolamento do desconcertante mundo que nos cerca e, consequentemente, de evasão num universo alternativo e paralelo. Uma doença, seja como for, embora, tal como no autismo, deva ser considerada a existência de diferentes graus de gravidade da maleita. Por exemplo: o facto de alguém, no dia em que fazemos 54 anos de idade, nos oferecer um livro sobre um sujeito de 54 anos que, desencantado com a vida, decide matar-se, não tem de ser visto necessariamente como uma sugestão velada. Pode tratar-se de uma simples coincidência.
quarta-feira, 21 de maio de 2025
Subiu-lhes a luz à cabeça
«Eu sinto a responsabilidade de ser o farol deste país». Luís Montenegro, 10 de Maio de 2025
O Chega «procurará ser o farol de mudança e um farol de estabilidade». André Ventura, 20 de Maio de 2025
terça-feira, 20 de maio de 2025
Explicação ao futuro
Parece que os meus contemporâneos apreciam programas de televisão em que humanos disfarçados de brócolo fazem de conta que cantam. Consta ainda que perdem tempo nas redes sociais a assistir à vida de outras pessoas, incluindo de indivíduos que se ufanam de atropelar outros cidadãos e de cometer certos crimes. Saibam, pois, que, caso os meus contemporâneos tenham decidido engolir baldes de esterco, esta sua escolha também não me vincula.
Uma grande distância
«Nem todo o ouro do Peru - escreveu Virginia Wolf no Orlando - pode pagar o tesouro de uma frase bem torneada». Mas daí a que nem sequer lho paguem com uma côdea de pão duro vai uma grande distância.
Talvez seja por isso que, noutro ponto do romance, Virginia Wolf acabe por constar o seguinte: «A vida é um sonho. É o despertar que nos mata».
quinta-feira, 15 de maio de 2025
O que queremos
Numa entrevista recente, o porta-voz do Livre, Rui Tavares, afirmou que "o eleitor só não se livra de Luís Montenegro se não quiser". A crer, porém, na generalidade das sondagens publicadas nas últimas semanas, é muito possível que os portugueses aceitem continuar a ter como primeiro-ministro um (outro) videirinho aldrabão. Ainda pior do que isso, é também provável que, como aconteceu há um ano, acabemos por dar a maioria absoluta dos nossos votos a um conjunto de partidos nos quais se abriga a pior ralé do país, entre especialistas e protagonistas em negociatas indecentes, mentirosos compulsivos, especuladores imobiliários, tratantes, dissipadores de fundos públicos, hipócritas, destruidores da escola, da saúde, da providência e do património que é de todos, especialistas em fraude e evasão fiscal, repartidores de vantagens indevidas, ladrões de malas, fascistas, abusadores de menores, racistas, gente com pouco carácter, xenófobos, agressores domésticos, mussolinis de carnaval, manipuladores compulsivos e, enfim, todo o género de indivíduos desprovidos de sentido de Estado e dos mais elementares princípios éticos. Se é este o país que queremos, é este o país que teremos.
quarta-feira, 14 de maio de 2025
Dormência ou acefalia
Um título da edição de hoje do Expresso online pergunta por que não queremos saber das crianças que Israel está a matar à fome e à sede em Gaza, quando não debaixo de toneladas de mísseis e de cimento armado, ou nas enfermarias dos hospitais que os fascistas judeus continuam a bombardear metodicamente. Os motivos da nossa insensibilidade (e da hipocrisia dos países de todo o mundo) são, todavia, relativamente óbvios: estamos como entorpecidos por uma dormência, já nem sequer apenas ética, que nos impede que nos incomodemos com a morte, com a vigarice mais descarada, com a mentira, com a manipulação, com a estupidez mais rasa e com o ódio destilado à hora dos telejornais.
Pepe Mujica, o ex-presidente do Uruguai, que hoje morreu, disse certa vez que dedicou a vida a tentar mudar o mundo, sem, todavia, ter conseguido mudar coisa alguma. Os motivos do seu insucesso não hão-de ser radicalmente distintos daqueles que nos impedem de "querer saber" dos bebés morrendo à fome em Gaza. Não queremos saber, não queremos pensar, não queremos ouvir senão o eco dos nossos piores sentimentos. Este texto é, por isso, uma perda de tempo. Este blogue também.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Políticas de saúde: quando alguém dá um traque no elevador
Existem, em Portugal, 8,5 médicos por cada mil habitantes. Trata-se do segundo maior rácio da União Europeia, o que não impede que os hospitais públicos e os centros de saúde do Estado continuem a padecer de falta de "recursos humanos" e a não assegurar, em certos casos, os serviços de emergência básica. Não é alheia a este facto a existência de 131 hospitais privados, dos quais talvez 90% foram construídos nos últimos 30 anos (e cujo investimento tem de ser amortizado o mais rapidamente possível, canalizando recursos públicos para o chamado "sector empresarial e social"; os liberais abominam o Estado, excepto quando este serve para lhes encher os bolsos). Não deve espantar-nos, por isso, que o orçamento da Saúde em Portugal continue a crescer mais ou menos sem controlo, nem que ninguém questione o facto de os contribuintes estarem a pagar cursos de Medicina a estudantes que não agradecem nem retribuem o esforço da comunidade (e que correm para os braços do primeiro grande grupo económico que lhes pisque o olho). Quando, porém, se trata de apurar responsabilidades pelo estado a que chegamos, os principais partidos comportam-se como quando alguém dá um traque no elevador: ninguém foi.
quinta-feira, 8 de maio de 2025
Ó patego, olha a chaminé!
Talvez tenham reparado (com algum esforço) que está a decorrer uma campanha eleitoral decisiva para, se calhar, os próximos quatro ou mais anos de um país que não costuma primar pelo esclarecimento e pelas boas decisões. Enquanto isto sucede, os órgãos de comunicação social intoxicam os eleitores com cardeais, especialistas em papas e papáveis, equipas de enviados especiais a uma praça de Roma e planos fixos de uma chaminé parecida com a do Rei dos Frangos em dias de fraco negócio. O canal público de televisão, que devia ser laico e republicano, é talvez o melhor de todos a entreter e a enganar pategos, também às custas, ainda por cima, de agnósticos, ateus, hindus, judeus, cristão ortodoxos, islamitas, budistas, evangélicos, anglicanos e ventríloquos. Mas não é impossível que os espectadores mereçam ser tratados como idiotas acéfalos.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Porque elegemos políticos que já conhecemos de ginjeira
Logo no princípio de As Aventuras de Tom Sawyer, o herói juvenil de Mark Twain é posto de castigo a pintar uma cerca. Começa por cumprir a penitência de modo muito contrariado e preguiçoso, mas descobre depois uma forma de fazer com que alguns amigos trabalhem por si e ainda lhe paguem para o fazer. Daí conclui o autor "uma grande lei que rege a Humanidade": "para se conseguir que um homem ou um rapaz cobice uma coisa, baste tornar essa coisa difícil de obter".
Cento e cinquenta anos após a publicação do livro de Twain, o expediente de Tom Sawyer parece ter alguma correspondência moral (digamos assim) na pulsão dos homens e das mulheres comuns para procurarem enriquecer fazendo o mínimo possível e sem qualquer estorvo dos princípios éticos. Deste modo, os videirinhos e vigaristas manipuladores, como Trump, Montenegro, Le Pen, Bolsonaro ou Ventura, parecem ter substituído no imaginário colectivo os exemplos que, ao contrário de Sawyer, nos ensinavam o valor do esforço, do trabalho e da honestidade.
Deixou, pois, de ser importante a avaliação dos méritos éticos da ascensão social e passou a valorizar-se apenas o resultado alcançado (a rede de hotéis, o apartamento de luxo no condomínio privado com piscina, a vivenda parola, o carro xpto, as jóias subtraídas ao património público, a cerca pintada). Por isso elegeram Trump depois de saberem que é um golpista, vigarista e abusador sexual. Por isso é também muito provável, a fazer fé nas sondagens, que voltemos a eleger um primeiro-ministro depois de sabermos que se governa e que vai continuar a governar-se — e sem que a consciência lhe pese — à custa do poder de que beneficia com os cargos que ocupou, ocupa e ocupará.
Não se deve estranhar, por isso, que nem sequer aqueles que se afadigam a corrigir algumas expressões politicamente incorrectas de As Aventuras de Tom Sawyer, como injun ou nigger, percam tempo a tentar emendar a ambição da personagem para enriquecer sendo pirata ou ladrão, aparentemente transformada em norma do nosso tempo.
sexta-feira, 2 de maio de 2025
Matar fica mais barato do que tomar café
Tem sido notícia do outro lado da fronteira a revogação de um contrato entre o Estado espanhol e uma empresa israelita para o fornecimento de 15.300.000 balas ao exército do país vizinho. Hoje, no El País, o Juan José Millás fez as contas: dividiu os 6.642.900 euros que Espanha devia pagar pelas 15.300.000 munições e concluiu que cada projéctil custa 43,4 cêntimos. "Um terço do preço de um cimbalino num café de bairro", acrescenta. Matar deve, assim, ser das poucas coisas cujo preço não está pela hora da morte.
quarta-feira, 30 de abril de 2025
O Mal que está a chegar
"E até no ar percebo o Mal indefinido que está a chegar".
Após 217 páginas em que tudo parece contaminado pela doença literária de Vila-Matas, a última frase de Canon de cámara oscura estabelece como que uma ligação directa com a realidade e com o tempo que vivemos. É, de algum modo, como se Vidal Escabia, o narrador, nos dissesse que, por muito aérea que pareça a actividade de alguém que vive de (e para a) literatura, não é possível deixar de ver o que acontece em redor, nem de perceber de que modo a perfídia mais daninha vai tomando conta de tudo, manipulando e falsificando a fim de que o mal possa triunfar.
terça-feira, 29 de abril de 2025
As notícias do fim do mundo eram francamente falsificadas
Afinal as notícias (falsas) sobre o fim do mundo eram, outra vez, francamente exageradas. Eu, que sou do tempo em que uma falha da rede eléctrica era apenas uma falha da rede eléctrica, já não tenho idade (nem pachorra) para correr para supermercados, açambarcar papel higiénico e colecionar latas de atum. Caminhei tranquilamente até onde sabia poder encontrar uma Barona fresquinha e sentei-me a ler. Nem meia hora depois, os festejos da garotada alertaram-me para o regresso da luz. O fim da tarde estava glorioso, cálido e a pedir mais algumas cigarrilhas ao ar livre. Depois veio o entardecer, a televisão e a internet. As notícias eram repetitivas e aborrecidas (a SIC chegou ao ponto de fazer um directo com o Ventura, equivalente a chamar um incendiário para ajudar no rescaldo do fogo), pelo que voltei à leitura do costume, aos gestos do costume e à mesmice de sempre, ainda um pouco divertido de ver os aguadeiros improvisados acartando paletes, os devoradores de papel higiénico e os proclamadores do apocalipse transpirando sob os seus exagerados carregos. Foi, de certa forma, melhor do que ir ao cinema ver uma comédia antiga.
P.S.: caso não tenham dado pelas ironias mais refinadas e tragicómicas do dia, o apagão aconteceu porque, a fim de maximizar o lucro dos accionistas, a privatizada EDP estava a importar energia a pataco de Espanha, quando Portugal tem capacidade suficiente para produzir a energia que consome; e as casas com painéis solares (e, portanto, auto-suficientes durante o dia) ficaram também às escuras porque o sistema (que pagaram) só funciona se estiver conectado, via wi-fi, à central gerida pelo monopólio eléctrico que nos rói os ossos.
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Somos todos um pouco Denver-7
Há, no mais recente Enrique Vila-Matas, Canon de Cámara Oscura, várias referências a um conto de Kafka que já aqui referi. Propenso, porém, a transformar tudo em literatura, EV-M vê nessa história kafkiana uma metáfora da criação literária, algo como uma caverna onde o autor/narrador se encerra para escrever longe do bulício do mundo (e talvez contra ele ou alheio a ele), tal como, de certa forma, faz o narrador ocupante desta ficção.
A fim de criar um cânone literário excêntrico, "intempestivo" e deslocado do mundo, Vila-Matas inventa desta vez um autor que é um androide da série Denver-7 (ou talvez não) e, portanto, uma inteligência artificial sem qualquer memória da infância, educado e humanizado por um escritor fracassista, Antonio Altobelli, que lhe legou a sua "poderosa biblioteca" e o incitou a aligeirá-la, escolhendo precisamente os livros e as citações de que mais gostasse.
Como produzindo, outra vez, uma "gargalhada infinitamente séria", EV-M joga e diverte-se com os conceito de autor e narrador, bem como com a ideia de literatura enquanto relação contínua com todos os livros escritos e por escrever - "como se no meio das letras de outros livros existisse ainda espaço para escrever novos livros". Que este exercício seja produzido por um (suposto) androide infiltrado entre as pessoas comuns de Barcelona é, em si, um pequeno achado, confirmando Vila-Matas como um dos mais engenhosos e distintos autores contemporâneos.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Não sigais esse salmão que aí vai todo pedrado
Segundo o El País, a exposição dos salmões às grandes quantidades de ansiolíticos que flutuam nos rios está a torná-los mais temerários e arrogantes, o que prejudica o comportamento que instintivamente os protege dos predadores. Ou seja: narcotizados, os peixes separam-se do grupo e correm mais riscos estúpidos, imitando, afinal, os drogados da espécie humana com poder suficiente para lançar tarifas, manipular preços e iniciar guerras.
Lembrei-me, por causa daquela notícia, de um poema do Alexandre O'Neill que, há uns anos, gozou do seu minuto de (má) fama, quando se viu declamado pela esposa de um político de espinha mole (e por isso capaz de vingar entre as agitadas águas saturadas de substâncias dopantes). Refiro-me ao poema que O'Neill dedicou ao cherne e que começa com os transtornados versos "Sigamos o cherne, minha Amiga!/Desçamos ao fundo do desejo/atrás de muito mais que a fantasia".
A ciência permite-nos hoje supor que o peixe Barroso cantado pela extremosa esposa talvez padecesse já então da intoxicação ansiolítica que afecta os salmões; e que o próprio Polyprion americanus do poema do O'Neill também não estaria totalmente livre de substâncias psicotrópicas. O poeta não teria, porém, como saber que perigos se ocultam num "peixe recalcado", seja americanus ou de outra nacionalidade qualquer. Mas tê-lo-á intuído, pois escreveu que "Em cada um de nós circula o cherne".
Num mundo cujos mares, rios e lagos se tornaram depósitos de substâncias tóxicas e microplásticos, há, quase de certeza, demasiado cherne e salmão envenenado a circular no sangue dos figurões que nos transtornam. Não os sigais, pois, que estão estragados.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Silvia Labayru, uma mulher
Interessa-nos a história da argentina Silvia Labayru, contada no livro La llamada, de Leila Guerriero? Absolutamente. E isto torna ainda mais estranho o facto de não ser ainda possível encontrá-la nos escaparates das livrarias portuguesas (em Espanha, em Janeiro, ia na 14ª edição ao fim de um ano). Conforme escreveu o Valdemar Cruz, trata-se de um livro "raro", "invulgar" e "muito perturbador", mas também urgente num tempo em que se reaproximam do poder os indivíduos que protagonizaram a violência e o autoritarismo que estão na origem do caso de Silvia Labayru.
Silvia é uma mulher real, de carne e osso, mas bela ao ponto de ser descrita como "um acontecimento", cujas convicções cidadãs e políticas levaram a que tivesse sido raptada, torturada e violada pelos militares da ditadura argentina. A narração da sua história obedece ao mais estrito rigor jornalístico (já tão pouco praticado) e não ignora, nem menospreza, as contradições e o exercício do contraditório, nem o humor, nem os momentos tragicómicos e burlescos que compõem qualquer vida humana, mesmo que exposta a situações que, se tivermos sorte, nenhum de nós experimentará.
Sendo um notável exercício jornalístico e biográfico, La llamada é também uma extraordinária peça literária que reconstrói "as coisas que aconteceram e as coisas que tiveram de acontecer para que aquelas coisas ocorressem, e as coisas que deixaram de acontecer porque aconteceram outras coisas". É História, é vida e é uma lição. Mas é bastante provável que ainda não a tenhamos aprendido e que, pelos vistos, prefiramos continuar a viver como se tais coisas não tivessem ainda acontecido e como se não estivessem a acontecer agora - em Buenos Aires, na Europa, em Gaza, na Ucrânia, no Ruanda, nos EUA, em Israel, no Irão, na Rússia, na Síria e em tantos outros sítios da nossa grande casa em chamas.
terça-feira, 1 de abril de 2025
A lei só se aplica aos outros bandidos
A reacção da líder fascista francesa à condenação judicial de ontem é bastante elucidativa do estado a que chegamos. Tal como sucede por cá (e não apenas com o partido em que estais a pensar), o discurso securitário e anti-bandidagem só se aplica aos outros, de preferência aos desgraçados de outro país qualquer.
Para que conste, Le Pen considerou que a sua condenação em tribunal - por andar a gamar (pardon for my french) fundos comunitários para pagar ordenados a amigalhaços - constitui "uma bomba atómica" e uma forma de "roubar" (cá está) a eleição presidencial aos franceses. Ou seja: não há problema nenhum em subtrair, roubar, gamar, violar menores, vigarizar, mentir, enganar, produzir falsas declarações éticas ou bater em mulheres se forem os nossos a praticar tais vilezas. Se formos apanhados, dizemos que estamos a ser perseguidos. E é muito possível que os papalvos que votam em nós engulam mais esta e continuem a caminhar alegremente para a sarjeta.
Dia das mentiras
No meu tempo, miudagem, não havia 1 de Abril sem que os jornais e os noticiários se dedicassem a inventar uma mentira para tentar iludir os leitores. Agora que as criam ou publicam acriticamente todos os dias e a todas as horas, é verdade que a antiga brincadeira faz já pouco sentido - tanto como esperar pelo dia da liberdade para ser livre ou pelo dia da mulher para nos lembrarmos delas.
Sendo, porém, já um pouco antigo, ainda me dedico, a cada 1 de Abril, a tentar perceber que embuste armaram, este ano, os senhores jornalistas. Mas, convenhamos, é cada vez mais difícil distinguir a pura peta, mesmo que verosímil, das supostas notícias do costume, já que a realidade se pôs de um jeito que até custa a acreditar nela.
Voltei hoje a fazê-lo - a procurar a patranha no palheiro, quero dizer - e encontrei, por exemplo, um estranho relato segundo o qual uma coligação dirigida por uma vigarista habilidoso e bem falante lidera as sondagens para as próximas eleições legislativas. Pensei que se tratava de uma impostura muito bem apanhada e cheguei a dar uma sapatada nas coxas a fim de iniciar uma gargalhada estrepitosa, mas engoli-a a tempo de que alguém se apercebesse da minha ingenuidade. Nos tempos que correm, tudo aquilo que parece inverosímil tem muito boas hipóteses de se transformar em facto consumado.
quinta-feira, 27 de março de 2025
Memorizem este nome: Rumeysa Ozturk
Rumeysa Ozturk é uma estudante turca nos EUA, com visto válido. Atreveu-se, em 2024, a assinar um texto de opinião coletivo publicado num jornal universitário, no qual se usava a expressão "genocídio palestiniano". Na terça feira, foi interceptada na rua por agentes de imigração de cara tapada, os quais se apossaram do seu telemóvel e da sua mochila, arrastando-a com os braços presos atrás das costas. O visto da estudante foi, entretanto, revogado e Rumeysa deve ser deportada. As imagens da sua detenção ("por apoiar o Hamas") são um sinal do novo tempo que estamos a viver - soez, totalitário, arbitrário, fascista, criminoso e sem lei. Rumeysa é um símbolo do fim da liberdade e da humanidade. Decorem o seu nome.
quarta-feira, 26 de março de 2025
Francisco Guedes, matéria das estrelas
Daqui a pouco, se não estou em erro, o meu amigo Francisco Guedes regressará à essencial condição de matéria das estrelas. Aí nos reencontraremos daqui a nada.
Para quem não saiba, o Francisco inventou, entre outras coisas, o Correntes d'Escritas, da Póvoa de Varzim, e o Literatura em Viagem, de Matosinhos, o que é o mesmo que dizer que inventou os festivais literários em Portugal (antes de que se tivessem tornado negócio). Julgo que o fez pelo mero gosto de escutar palavras inteligentes. Amava os livros e respeitava quem os escreve como muito poucos.
Na condição de matéria do universo, cinza primordial, o Francisco continuará, como até aqui, a alimentar sonhos que sejam árvores, flores, frutos e carne do mundo - essa amálgama de coisas simples e belas das quais, de vez em quando, brota um verso, um livro, uma canção.
terça-feira, 25 de março de 2025
Isto não é um post sobre restaurantes de ramen
Determinada como um penedo ao vento, a Câmara Municipal do Porto terá, há dias, recusado suspender o licenciamento de novos hotéis na cidade. Compreende-se. Quase de partida, os actuais autarcas estão perfeitamente cómodos enquanto gestores, não de uma cidade, mas de uma sucessão de imobiliárias, tuck-tucks, unidades de alojamento temporário e restaurantes de ramen para turista ver.
Respirar (numa galáxia distante)
A notícia já tem alguns dias, o que para o caso, e considerando a vastidão do inescrutável, é deveras irrelevante. Refiro-me à descoberta de oxigénio na galáxia mais distante do universo, a JADES-GS-z14-0, cuja luz demorou 13,4 mil milhões de anos a chegar à Terra (a idade estimada do Universo é de 13,8 mil milhões de anos).
De acordo com a informação disponível, a descoberta obrigará os astrónomos a repensar a velocidade de formação das galáxias no Universo primordial. Para os não praticantes da astronomia, a descoberta de oxigénio, por mais longínquo que esteja, constitui sobretudo uma janela que se pode abrir para respirar ares mais saudáveis - uma poética possibilidade de exílio ou fuga de um planeta que se vai tornando mais mesquinho, sujo, vil e irrespirável a cada dia que passa.