terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Ah, o liberalismo!

 Passou relativamente disfarçada pelos órgãos de comunicação social portuguesa a notícia segundo a qual uma criptomoeda promovida ou recomendada pelo presidente argentino Javier Milei arruinou milhares ou milhões de pessoas em poucas horas. No máximo esplendor do liberalismo que por cá se vende como se fosse a última bolacha do pacote, o facho vigarista respondeu a quem o questionou ser normal que, quando se vai jogar ao casino, se esteja preparado para perder dinheiro.

Independentemente de saber quem ganhou o dinheiro que os cripto-otários perderam (mas podemos imaginá-lo), importa estabelecer que não é normal que um chegano vigarista seja presidente de um país. Mas acontece. Na Argentina ou até na mais poderosa nação do mundo, os mais altos magistrados são agora simples vendedores da banha da cobra (cripto ou não), travestidos de paladinos do liberalismo enquanto sinónimo de simples desregulação, tendo em vista a transformação das economias nacionais em casinos onde é normal que um pobre perca dinheiro para que os mais ricos o embolsem.

É, assim, relativamente normal que os cheganos se babem com o sucesso do gémeo argentino Milei. Menos comum, mas não surpreendente, é ver que também os fachos da IL andam encantados com Milei e a brandir serras elétricas com ar triunfal, exibindo os (supostos) resultados macro-económicos que escondem o impacto das políticas ditas liberais na vida dos cidadãos argentinos que não sabem vigarizar o vizinho com criptomoedas. Para quem tivesse dúvidas (e dois neurónios activos), a criptomoeda $Libra serve como demonstração cabal de que a farinha de diferentes marcas que por aí se vende provém, afinal, toda do mesmíssimo saco.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A neve da Baviera

 Nevava esta manhã em Munique, diante do Bayerischer Hof, onde está a decorrer uma Conferência de Segurança que juntará até domingo, creio, alguns líderes mundiais. Quero dizer que, quando entrei no estabelecimento suburbano onde tomei o primeiro café do dia, o televisor estava ligado e transmitia imagens do dispositivo policial presente naquele local, sob o qual caíam grandes, leves, alvíssimo flocos de neve. Vieram-me à cabeça memórias de outros nevões na Baviera, da paz que havia nessas tardes em que, sem nenhum rumor, tudo se cobria de branco diante da minha janela. Havia corvos debicando no chão gelado, crianças encasacadas, bosques belos como postais ilustrados, colunas de fumo elevando-se de certas chaminés; automóveis, telhados e sebes cobertos de neve. E um silêncio concreto e material como o que há-de existir antes de que caiam os obuses de todas as guerras. Lembrei-me também de que em 1938, a 29 de Setembro, se reuniram em Munique vários líderes europeus, tendo a Inglaterra e a França condescendido com a cedência à Alemanha de Hitler da região dos Sudetas, na Checoslováquia. E depois começou a Grande Guerra.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Os grandes prestidigitadores

 Há um conto de Kafka no qual o autor checo parece coincidir com Foster Wallace na crítica implícita à sociedade do espectáculo. Não me recordo do título do conto - era o que faltava! -, mas nele surge o quase proverbial K., desta vez no papel de "grande prestidigitador", "apesar de - comenta o narrador - o seu programa ser um tanto monótono". E acrescenta: "É claro que a suposta sobrelotação da sala desempenha, sem dúvida, um papel decisivo em toda a impressão com que fiquei do espectáculo”.

Todos nos lembramos, suponho, do tempo em que o imitador português do grande prestidigitador americano era um murcão desconhecido e incapaz de ganhar, sequer, as eleições para a Câmara Municipal de Loures, e de como certos canais televisivos de entretenimento lhe lotaram a sala (para seguir a ideia de Kafka) e continuam a providenciar um público a este ilusionista (mesmo se se trata de um público que não foi ensinado a escolher bem, para acompanhar a terminologia de Foster Wallace).

Não é difícil concluir que o sucesso destes aldrabões depende em grande medida da "suposta sobrelotação da sala" que lhes é proporcionada pelos media. Um imbecil a falar sozinho (num banco de jardim ou num blogue), conforme sucede a este vosso criado, constitui um espectáculo apenas lamentável. Já um imbecil com um público é muito capaz de se tornar perigoso.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Esclarecimento estatístico

 Malgrado as interrupções, as suspensões e as efémeras desistências, este blogue atingiu recentemente os 1.600 posts (desde julho de 2010) e as 548 mil visualizações. O primeiro número parece-me francamente excessivo. O segundo há-de ser resultado de um exagero informático.

Essa é a questão

 David Foster Wallace não previu Trump e Musk n'A Piada Infinita (se bem que o presidente Gentle apresente algumas semelhanças bastante inquietantes). Mas não deve ser possível prever uma tragédia de tais proporções. Mas imaginou um tempo ficcional em que os EUA e o Canadá vivem em "interdependência" e à mercê, no país mais a sul, das consequências de uma cultura de ignorância e de submissão ao entretenimento. A dado passo, um separatista do Quebeque pergunta a um agente dos serviços secretos inquieto com a derrocada dos EUA: "Quem é que ensinou os americanos a escolher com cuidado?". Essa é a questão. E não só na América.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Com três letras se escreve o futuro

 Noventa e oito mil milhões de euros. Leram bem. Noventa e oito mil milhões de euros é quanto o nazi sul-africano que manda nos EUA se propõe pagar pela OpenAI, uma das empresas que desenvolveu um motor de inteligência artificial. Sucede que o dono desta empresa respondeu à oferta, para já, com um singelo (e educado) "não, obrigado".

O celerado cor-de-laranja e o Goebbels africano podem ter sido sufragados pelos seus compatriotas para afirmarem todas as imbecilidades criativas que lhes ocorram. Mas (ainda) não são imperadores do mundo. No Canadá ou em Gaza, na Gronelândia ou no Golfo do México, na Ucrânia ou em qualquer outro local que a dupla possa cobiçar, a perspectiva de um futuro digno, pulcro e razoável vai depender muito da capacidade de uma parte da humanidade para articular - com firmeza e consciência - as três letras da palavra "não". 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Havíamos de fugir da nossa cidade a voar?

 Perdoar-me-ão, decerto, que regresse a Kafka tão depressa, mas um dos seus textos parece particularmente adequado ao êxodo que os EUA pretendem promover em Gaza. Refiro-me a um pequeníssimo conto que refere a invasão de uma cidade onde todos os habitantes têm asas, os quais, paradoxalmente, não fugiram aquando da chegada do rigoroso invasor. "Admirais-vos?", pergunta um velho interpelado pelo narrador. "Havíamos de fugir da nossa cidade a voar? Deixar a terra natal? Os mortos e os deuses?".

Um plano de negócios para a Palestina

Embora totalmente alheio ao direito internacional ou à mais singela ideia de humanidade, o plano de negócios de Trump para Gaza não é de todo mal esgalhado. Uma Riviera do Médio Oriente, onde caibam dois ou três Casinos Trump, mais uns quantos hotéis e condomínios de amigalhaços, constitui, à partida, dinheiro em caixa. 

O empreendimento tem também a vantagem de clarificar o verdadeiro objetivo de 15 meses de guerra, após a conveniente distracção dos serviços secretos israelitas que permitiu o ataque do Hamas em Outubro de 2023. Ao contrário do que foi anunciado, a invasão de Gaza não visou «a libertação de todos os reféns» e a «destruição total do Hamas», já que nenhuma das coisas aconteceu e Netanyahu acabou a negociar um cessar-fogo, coisa que garantiu várias vezes que não faria. 

As forças armadas de Israel foram pura e simplesmente usadas como brigada de demolição dos inestéticos edifício de Gaza e como instrumento para reduzir a pressão demográfica no território, de modo a que Trump e os parceiros de negócio não tenham de arcar com a despesa de esvaziar a futura Riviera do Médio Oriente de todos aqueles estorvos.

P.S.: os 2 cães muitos ordinários sintetizaram ainda melhor esta ideia.

Ficções para sempre inéditas

 Desde que disponibilizei os contos de Um tão brando amor, principiei já outra meia dúzia de histórias novas que provavelmente não chegarão a lugar algum. Adoptei, neste afã, um estilo ligeiro e irónico, o qual, noutro tempo, talvez me garantisse alguns leitores (mais do que catorze, pelo menos), algo que, no actual contexto editorial e cultural, me obrigaria a nascer outra vez e a considerar as redes sociais a melhor coisa que inventaram desde o insecticida e a bomba de neutrões. E, todavia, escrevo essas histórias e depois abandono-as, persuadido de que constituem uma perda de tempo inaceitável numa pessoa que em breve estará a frequentar consultas de Geriatria e lares de terceira idade com serviço para acamados. Mas depois reconsidero. É provável que, nos lares do meu futuro próximo, não encontre nada melhor para fazer do que escrever ficções inéditas, para sempre inéditas, e que poderiam até parecer divertidas e refrescantes a algum (raro) humano ainda dotado de sentido de humor e vontade de ler alguma coisa que pareça não ter sido escrita por uma aplicação de inteligência artificial. Serão, essas ficções, porém, um segredo só nosso - meu e do processor de texto.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Não teremos tanta sorte

 Se não fosse apenas um teatro para iludir papalvos, o discurso securitário e alegadamente inquieto com a segurança assemelhar-se-ia bastante a um conto de Kafka que acompanha o pensamento de um animal convencido de que construiu uma toca perfeita e inexpugnável. A monomania do bicho, já velho, é de tal ordem que ele não chega a sentir-se seguro na complexa fortificação subterrânea, apesar de todas as precauções que tomou, e julga que os invasores e os inimigos se aproximam e estão cada vez mais próximos. Consegue, aliás, escutá-los. O conto, porém, acaba - ou melhor, interrompe-se - sem que chegue a acontecer alguma coisa. 

Julgo que não teremos tanta sorte como o animal do conto.

Bonés há muitos

 A crónica desta manhã do mestre Fernando Alves na Antena 1 termina com a frase "sombreros há muitos", aludindo simultaneamente à guerra comercial trumpista com o México e a uma famosa frase do cinema nacional. Lembrei-me, por causa disso, de que também está em curso uma guerra de bonés, espoletada pelo MAGA de Trump, mas que vai tendo repercussões globais: no Canadá surgiu, por exemplo, um boné garantindo que o país não está à venda, enquanto as facções beligerantes no Brasil apresentam, também neste particular, dois modelos distintos: o do PT diz que "o Brasil é dos brasileiros" e o outro promete "comida barata novamente" (que pode parecer publicidade enganosa de uma cadeia de fast-food, mas, pelos vistos, saiu de uma enganosa mente bolsonarista). Também em Portugal, aliás, o líder dos luso-fascistas garantiu há não muito tempo que os cheganos vão ter "um boné impecável". Constata-se, assim, que não faltam sombreros e que abundam bonés. Já as cabecinhas que os usam parecem andar um pouco ausentes. 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A inteligência artificial continua a ser um bocado burra (felizmente)

 Um dos meus primos perguntou a uma aplicação de inteligência artificial quem é Manuel Jorge Marmelo. A resposta que a máquina lhe deu inclui várias irrelevâncias e algumas informações correctas, mas também refere que nasci em Lisboa no ano de 1963 e que, enquanto jornalista, trabalhei em "várias publicações, incluindo o jornal "Expresso'" (jamais). 

Feito lisboeta (t'arrenego) e sexagenário, fiquei ainda a saber, entre outras coisas, que as minhas obras literárias mais conhecidas são "O Livro das Sombras" (2007) e "A Lição de Anatomia" (2015), títulos relativamente bem esgalhados pelo Scott Cunningham e pelo Philip Roth (vénia), mas aos quais sou totalmente alheio.

Serve este post, por isso, como advertência: no caso (bastante improvável) de vos pedirem para redigir um trabalho escolar sobre esse tal caramelo, cuidai, miúdos, de não recorrer à famosa IA, a qual, para nossa sorte, continua a ser um bocado burra.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Mais depressa nos cai o asteroide em cima

 Um telescópio em funcionamento no Chile detectou, a 27 de Dezembro, o asteroide 2024 YR4, cuja rota pelo espaço fez elevar os níveis de alerta das agências espaciais norte-americana e europeia. De acordo com os cálculos já efectuados, há 1,3% de probabilidade de aquele corpo celeste chocar com a Terra em Dezembro de 2032 (daqui a oito anos, portanto).

Um cálculo de probabilidade é apenas isso, um cálculo de probabilidade, e não é sequer impossível que, no actual quadro geoestratégico mundial, o planeta nem sequer subsista até 2032 ou que a espécie humana  já não esteja entre aquelas que resistirão à insânia. Como escreveu Shakespeare, «o nosso futuro não reside nas estrelas, mas em nós mesmos», o que, muito francamente, parece constituir, neste caso, uma adversidade substancial.

Suponhamos, ainda assim, que ainda haverá Terra e humanidade em 2032, e que, estando os cálculos errados, o  asteroide 2024 YR4, ou outro qualquer, chocará connosco e provocará a angústia e a destruição antecipada pelos filmes-catástrofe de Hollywood. Um optimista inveterado tenderá a ver nesse desastre uma oportunidade para que eventuais sobreviventes recomecem a História da humanidade a partir de uma base mais sustentável, não apenas do ponto de vista demográfico e tecnológico, mas sobretudo de uma perspectiva ética.

Para que tal fosse possível, seria necessário supor, porém, que o asteroide 2024 YR4 possuiria uma capacidade selectiva que permitiria que os justos se salvassem, condenando apenas os facínoras, os vigaristas, os mentirosos, os ambiciosos, os gatunos e os tiranetes tresloucados (algo que, conforme bem sabemos, não parece estar ao alcance dos asteroide ou dos vírus pandémicos). Pelas minhas contas, a probabilidade de que algum acidente natural ou artificial contribua para melhorar a espécie humana é muito inferior a 1,3%. Mais depressa nos cai o 2024 YR4 em cima.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Exílios, desterros, isolamentos

 «Todos procuramos um lugar num mundo cada vez mais hostil e desapiedado».

A frase acima pertence ao escritor argentino Matías Néspolo e foi proferida numa entrevista recente a propósito do romance Una fábula sencilla. Néspolo disse-a para sinalizar as dificuldades crescentes que enfrentam «os migrantes, os refugiados e os desterrados de todos os géneros», mas pensei que a frase pode facilmente adequar-se a outros tipos de exílio, de desterro ou de isolamento de uma realidade também hostil e, até certo ponto, inacreditável, por não parecer possível que em pleno século XXI, depois de Auschwitz e do bombardeamento táctico de Hamburgo, do Gulag e do Apartheid, do genocídio do Ruanda ou do genocídio arménio, seja ainda possível que os mesmos erros e tragédias continuem a repetir-se vezes sem conta e com o apoio e a concordância de vastas parcelas dos cidadãos (sobre os quais, cedo ou tarde, inevitavelmente recairão as consequências).

Exilarmo-nos da realidade, desta realidade, há-de ser, afinal, um modo tão adequado e saudável como qualquer outro de lidar com a sua violência e o seu despropósito irracional. Quando nos exilam das nossas profissões e dos nossos direitos cívicos, dos nossos sonhos e da esperança no triunfo de uma decência essencial, do tempo que leva a assistir ao pôr-do-sol ou, enfim, do lugar que procuramos ocupar no mundo, somos já um pouco desterrados também de nós mesmos.

Golfo do México, uma metonímia

 Há meia dúzia de anos talvez tendesse a acreditar que, sendo possível alterar de forma discricionária o nome do Golfo do México, dificilmente se poderia apagar a História que explica a sua designação. Hoje já não estou muito certo disto.