Logo no princípio de As Aventuras de Tom Sawyer, o herói juvenil de Mark Twain é posto de castigo a pintar uma cerca. Começa por cumprir a penitência de modo muito contrariado e preguiçoso, mas descobre depois uma forma de fazer com que alguns amigos trabalhem por si e ainda lhe paguem para o fazer. Daí conclui o autor "uma grande lei que rege a Humanidade": "para se conseguir que um homem ou um rapaz cobice uma coisa, baste tornar essa coisa difícil de obter".
Cento e cinquenta anos após a publicação do livro de Twain, o expediente de Tom Sawyer parece ter alguma correspondência moral (digamos assim) na pulsão dos homens e das mulheres comuns para procurarem enriquecer fazendo o mínimo possível e sem qualquer estorvo dos princípios éticos. Deste modo, os videirinhos e vigaristas manipuladores, como Trump, Montenegro, Le Pen, Bolsonaro ou Ventura, parecem ter substituído no imaginário colectivo os exemplos que, ao contrário de Sawyer, nos ensinavam o valor do esforço, do trabalho e da honestidade.
Deixou, pois, de ser importante a avaliação dos méritos éticos da ascensão social e passou a valorizar-se apenas o resultado alcançado (a rede de hotéis, o apartamento de luxo no condomínio privado com piscina, a vivenda parola, o carro xpto, as jóias subtraídas ao património público, a cerca pintada). Por isso elegeram Trump depois de saberem que é um golpista, vigarista e abusador sexual. Por isso é também muito provável, a fazer fé nas sondagens, que voltemos a eleger um primeiro-ministro depois de sabermos que se governa e que vai continuar a governar-se — e sem que a consciência lhe pese — à custa do poder de que beneficia com os cargos que ocupou, ocupa e ocupará.
Não se deve estranhar, por isso, que nem sequer aqueles que se afadigam a corrigir algumas expressões politicamente incorrectas de As Aventuras de Tom Sawyer, como injun ou nigger, percam tempo a tentar emendar a ambição da personagem para enriquecer sendo pirata ou ladrão, aparentemente transformada em norma do nosso tempo.