quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Final feliz para raparigas tristes -- um conto saído da gaveta

Há quase uma semana que Ayame acorda todas as noites a meio de um sonho perturbador. Não se trata de um pesadelo, apesar de também não ser um sonho agradável, pelo que o incómodo que sente talvez resulte do modo passivo, quase indiferente, com que as imagens se sucedem no interior do seu sono, no escuro dos olhos fechados.

Ayame sonha que está a comer a própria mão. Fá-lo devagar e tranquilamente, como se os dedos que trinca pertencessem a outra pessoa – mas são suas as unhas pintadas de verniz azul Capri, seus os dedos pequenos e nédios, e cada uma das tenras falanges, crocantes, ou assim lhe parecem enquanto mastiga suavemente.

A sequência de imagens produzida durante o sono pelo inconsciente de Ayame assemelha-se a um velho filme de Nagisa Ōshima, ou talvez a um filme de Kenji Mizoguchi, ela não sabe dizer ao certo. Há muito tempo que não vê cinema antigo, mas crê que o sonho tem alguma coisa do ambiente sombrio, melancólico e um pouco obsceno que associa a Mizoguchi e a Ōshima, muito adequado para cenas dramáticas com sabres ou para eviscerações rituais com punhais wakizashi. Ayame tem muitas vezes a sensação de que também o suicídio do escritor Yukio Mishima podia ter feito parte de um desses filmes; e que em todos eles, a dado momento da narrativa, aparece uma personagem lúgubre, sempre a mesma, que repete a frase

Nada enobrece tanto como a dor.

Trata-se do género de frase, pensa Ayame enquanto desperta, que pode ser dita por qualquer pessoa que tenha a pretensão de compreender alguma coisa sobre o sofrimento. Também a Ayame lhe sucede, às vezes, sentir-se magoada e ferida por uma aflição de origem incerta, uma dor abstracta e, ainda assim, tão debilitante e intolerável quanto um corte na pele, a dismenorreia ou o pulsar de uma inflamação da polpa dentária, sem que, todavia, lhe pareça que essa dor íntima lhe concede poderes cognitivos especiais.

O sonho de Ayame parece-se, seja como for, com um filme japonês taciturno, o que em si mesmo não tem nada de surpreendente: ela é uma jovem mulher de Shinjuku, dos subúrbios de Tóquio. Algo mais extravagante é o facto de Ayame acordar com a certeza de que a personagem que come a própria mão é uma francesa habituada a alimentar-se de andouillettes, de tripas refogadas e de chispe passado pelas brasas. Ou seja: o seu sonho acontece a alguém que é a própria Ayame, com o seu rosto, a sua boca, os seus dentes e os seus dedos pequenos, e, ao mesmo tempo, a uma outra pessoa.

Acresce que Ayame é vegetariana desde o início da adolescência e nunca conheceu nenhuma rapariga francesa, nem antropófaga nem omnívora.

Enquanto desperta e se recompõe do seu sonho autofágico, Ayame pensa que desenvolveu uma ideia pré-concebida segundo a qual as raparigas francesas são todas um pouco libertinas e um pouco indecentes, embora não deixem, por causa disso, de ser também angustiadas e tristes, no que se assemelham bastante às raparigas japonesas. Estas, porém, não têm sequer a compensação do deboche e limitam-se a ser sorumbáticas mesmo quando se esforçam para parecer depravadas e usam umas saias tão curtas que lhes deixam as nádegas à vista.

Embora não seja intrinsecamente triste, mas apenas insólito, o sonho de Ayame produz nela um efeito semelhante ao que lhe provocaria a morte de um ente querido ou um filme de Nagisa Ōshima. Acorda, portanto, como se na sua cabeça pairassem, muito ao longe, os acordes de Dear Prudence na versão dos Siouxsie and The Banshees, nunca na interpretação original dos The Beatles, embora as palavras sejam as mesmas e perguntem a essa imaginária rapariga triste se não vai voltar a sorrir ou a sair à rua para se divertir e saudar novo dia, o céu azul e o canto dos pássaros.

Ayame desperta devagar e, como Prudence, também não tem vontade de sair – nem da cama nem de casa. Deve continuar a chover em Shinjuku e faz frio para lá do aconchego do edredão, na realidade hostil que Ayame evita enfrentar permanecendo de olhos fechados a recordar o sonho em que come a própria mão. Também pensa em outras coisas tristes, como o trabalho burocrático que faz no escritório de registo de patentes, as refeições que aquece no micro-ondas e o tempo que passa no metro, demasiado próxima dos outros passageiros e fazendo o possível para não ter de olhar para eles. Mas não consegue evitá-lo e vê-lhes o semblante omisso que parece atravessar a realidade transparente da qual também Ayame faz parte, embora ela não tenha ainda perdido o hábito de procurar compreender o que sucede em seu redor. Sente-se, por isso, como um espectro invisível que observa sem ser visto ou como o visitante de um museu que aprecia os retratos e as estátuas sabendo que o olhar que lhe devolvem não enxerga coisa alguma, ocupando dimensões inconciliáveis com a sua. É também o que sucede com os passageiros do metropolitano que não levantam os olhos dos telemóveis e que neles se exilam para não ter de lidar com os demais. 

Ayame pensa que, se fosse bonita como Prudence, talvez pudesse interpelar a atenção de algum desses sonâmbulos e levá-lo a sorrir-lhe. Mas é pequena, esgalgada e feia, e tem, além disso, os olhos pequenos e mortiços, e os dentes tortos, o que provavelmente a impediria de retribuir a amabilidade. Também é muito raro que tenha vontade de sorrir e, quando procura definir aquilo que sente, ocorre-lhe a palavra angústia. Mas é possível que o termo médico depressão descreva ainda melhor a sua falta de ânimo.

Ayame volta a lembrar-se do escritor Yukio Mishima e do seu suicídio ritual por seppuku, que consumou logo depois de ter escrito que “gostaria de viver para sempre”. Ayame crê que pretender existir eternamente é pelo menos tão triste e inútil como empunhar uma faca e eviscerar-se numa manhã de Novembro, por muito que chova, faça frio e se acorde a meio de um sonho enigmático.

Ayame desperta sempre antes de começar a cortar, mastigar e deglutir os ossos, a carne, os músculos e a pele do metacarpo da mão esquerda – é sempre essa a mão que come. Depois fica a pensar no sonho, em qual pode ser o seu significado, durante quatro ou cinco minutos, às vezes mais. Já lhe aconteceu ter vontade de roer as unhas enquanto procede a esse exame, mas nunca o fez, desde logo para não estragar o verniz azul Capri que ela mesma aplica uma vez por semana, mas também por recear não ser capaz de evitar que a realidade imite o sonho.

Antes de, por fim, abrir os olhos para procurar certificar-se de que ainda não nasceu o dia, Ayame masturba-se com os dedos da mão esquerda, precisamente aqueles que costuma comer durante o sono.

Antes de o sonho ter começado, Ayame usava sempre a mão direita para esfregar o clítoris. Agora que recorre à mão canhota, tem a sensação de que está a fazer amor com outra pessoa; de que não está sozinha na sua cama ou de que a mão que a toca não lhe pertence. Pode imaginar que os dedos que sente na sua carne mais secreta são os de um desconhecido, ao qual se permite idealizar livremente. Mas, quando termina e abre os olhos, Ayame está outra vez sozinha e tão triste como quando acordou do seu sonho.

Enquanto, daí a pouco, trata das suas abluções matinais, Ayame pensa que o seu despertar podia ser contado num filme japonês chamado Final feliz para raparigas tristes ou numa canção dos Beatles. É o único momento do dia em que sorri.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

A dama e os vagabundos, colecção Outono-Inverno 2024

 Ainda está aí alguém? Duvido. Mas talvez, por desfastio ou acidente, algum ocasional leitor acabe ainda por tomar conhecimento deste texto, que não é senão um cartão-postal quase demasiado madrugador daquelas ruas do Porto que parecem existir somente como cenário para os instantâneos fotográficos de turistas em busca do mais very typical de cada recanto do mundo. Sucedeu uma destas manhãs: na esquina das ruas das Carmelitas e de Cândido dos Reis, à sombra da Torre dos Clérigos, decorria uma sessão fotográfica de uns trapos de moda ali entre uma loja de quinquilharias de luxo, as bugigangas de uma ourivesaria e as miudezas de uma loja de lembranças (dessas que, segundo o edil, talvez sirvam para lavar mais branco o dinheiro que não tenha ainda sido usado para comprar algum exclusivíssimo apartamento da marginal). A loiríssima e vaporosa dama, elegantemente ataviada, ensaiava poses, levantava o queixo e punha a mão na cintura, indiferente, creio, aos dois sem-abrigo que dormem regularmente naquelas esquinas e que continuavam quietos e talvez adormecidos apesar do pouco usual movimento àquela hora do dia. Com alguma sorte, e algum cinismo pós-moderno, é mesmo possível que os mendigos, ou o seu impessoal embrulho, acabem, não a atrapalhar o público como numa canção do Chico Buarque, mas a servir de adereço ou cenário da próxima colecção Outono-Inverno.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

As pessoas dentro dos livros

 ... compreendeu confusamente que o leitor de uma história participa, querendo ou não, na sua trama, ainda que na qualidade de fantasma (...). Sou um verdadeiro fantasma para as personagens deste conto, tornou a pensar. Sou capaz de vê-las e de escutá-las, mas elas não conseguem ver-me nem ouvir-me a mim. (...) Como vou saber, murmurou de si para si, se abandonei a realidade para entrar num conto ou se abandonei o conto para entrar na realidade.

Em Solo humo, de Juan José Millás (tradução minha)

sábado, 22 de julho de 2023

Por um reino do Pineal livre e independente


Tenho a certeza de que vossas excelências já terão reparado na assombrosa coincidência que há entre as posições civilizacionais, éticas, culturais e políticas dos habitantes do "Reino do Pineal" e as dos apoiantes dos partidos neofascistas que vão medrando um pouco por toda a parte. Todos desprezam a instrução e a ciência (chamam opiniões às verdades científicas), estão convencidos de que o universo se move em torno dos respectivos umbigos e estão dispostos a ver os filhos morrer por falta de assistência médica ou de vacinas (entre outras bizarrias). Se exceptuarmos a sempre sensível questão migratória (e, vá lá, as opções de indumentária), muito pouco distingue os discursos de Trump, Bolsonaro, Orbán, Erdogan, Ventura ou Abascal (apenas para referir alguns casos de grande notoriedade pública) das posições públicas de "Akbal Pinheiro", o líder do Pineal. Num mundo perfeito, as pessoas que partilham ideias tão extravagantes e deslocadas da realidade deviam poder viver em paz, todas juntas (e morrer todas juntas, de preferência com sarampo). O Pineal parece-me um sítio tão bom como qualquer outro para reunir um conjunto tão significativo de mentes extravagantes e visionárias, com a óbvia vantagem de só se estragar uma casa. Mas duvido que Trump ou Abascal, que Ventura ou Orbán, para dar alguns exemplos, gostassem de ter aqueles vizinhos. E vice-versa.


terça-feira, 4 de julho de 2023

A morte de Victoria Amelina

 



Notícias de hoje dão conta de que a Rússia acusou a Ucrânia de atacar Moscovo com drones — curiosa lamúria de um país que há quase 19 meses destrói cidades ucranianas com drones, mísseis e tudo o mais que tenha à mão de semear. Na semana passada, por exemplo, o regime fascista de Moscovo atacou um restaurante na cidade de Kramatorsk, no qual jantavam — tão pacificamente quanto é possível jantar — a escritora Victoria Amelina e os colombianos Héctor Abad Faciolince (também escritor), Sergio Jaramillo e Catalina Gómez. Victoria acabou por morrer no domingo, vítima dos ferimentos provocados por um estilhaço resultante da explosão, tornando-se a 13ª baixa do míssil Iskander que atingiu a casa de pasto (e não um dos imaginários alvos militares com que a Rússia procura camuflar a carnificina).

Aos 37 anos, Amelina continua inédita em Portugal, apesar de já ter vencido o Prémio Joseph Conrad e de ter sido finalista do Prémio de Literatura da União Europeia (é provável que a editem agora, havendo uma brecha na torrente de best-sellers que todas as semanas inundam as livrarias). Segundo Faciolince, citado pelo El País, a explosão aconteceu durante um momento em que o grupo, sentado à mesa do restaurante, bebia cerveja, ria e brincava com a hora do recolher obrigatório. "Mas porque estamos todos bem e ela não? Isto é uma roleta russa na qual a um sai um estilhaço e a outros nada. É espantoso estar assim e viver num mundo onde acontecem estas coisas", declarou Héctor.

Victoria Amelina não voltará a sorrir nem a escrever. Também, não tarda, se lhe aplicarão os dois versos de Borges que o pai de Faciolince levava no bolso quando foi morto por paramilitares colombianos numa outra guerra: "Já somos o esquecimento que seremos/o pó primordial que nos ignora”. A guerra russa não pára de produzir pó, cinzas, morte e destruição de tudo. Do sorriso de Amelina também.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Atravessar portais

 Estareis decerto recordados, e ai de mim que duvidasse, de que procurei Montevideo em Munique, já lá vão sete meses. Chegavam, então, o Inverno e as temperaturas negativas à Baviera. Há coisa de um mês, quando começava a irromper o Verão, atravessei a fronteira para comprar tabaco e ocorreu-me que talvez encontrasse o mais recente livro de Vila-Matas numa pequena livraria de Valencia de Alcantara, que foi efemeramente portuguesa durante alguns anos do século XVII e que leva o título de "mui nobre, antiga e leal vila". Mas o estabelecimento estava fechado para a siesta e tardaria em abrir mais do que eu estava disposto a esperar. Comprei-o só agora, em edição portuguesa (para meu pesar), na cidade que responde pela divisa, quase gémea daquela, de "antiga, mui nobre, sempre leal e invicta". Deste modo também eu, correndo atrás do livro, fui abrindo portas e atravessando umbrais entre distintos lugares, conforme se promete que o livro fará. E agora vou-me refastelar à sombra e deixar que Vila-Matas arrombe as portas de comunicação entre os dois ou três neurónios que ainda me sobejam, bocejando de volúpia e aborrecimento. Talvez, assim alimentado, ainda seja capaz de voltar a "fazer-me passar por escritor", conforme escreve o catalão, talvez sobre si mesmo ou sobre o seu personagem em Montevideo, o que frequentemente vem a ser a mesma coisa.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Os mais cruéis prazeres


Um estudo realizado pela Universidad Miguel Hernández acaba de demonstrar que, quando contemplam O Jardim das Delícias, de Bosch, os visitantes do Museu do Prado se sentem particularmente atraídos pela parte do tríptico que representa o Inferno. Dedicam, para sermos mais exactos, 33,2 segundos a cada metro quadrado dessa parte da pintura, o que compara com os 26 e os 16 segundos gastos com cada metro quadrado da vida terrena e do Paraíso, respectivamente.

É impossível saber se Bosch pretendeu, ao pintar o tríptico, que o Inferno e os seus cruéis habitantes, à direita de quem olha, atraíssem mais atenções, mas parece certa a propensão humana, mesmo que reprimida, para o abismo, o negrume e o desconhecido. Que o digam os cinco milionários aventureiros que seguiam a bordo de um submarino turístico dedicado a visitar os restos do Titanic no fundo do Atlântico. A embarcação desapareceu dos radares e encontra-se agora em parte incerta, se calhar fazendo companhia aos destroços do malogrado paquete.

Ali, no mais inóspito abismo, no fundo do oceano, esses turistas do desconhecido talvez tenham podido pressentir que cumpriam uma espécie de destino ou um encontro inevitável com o escuro mais escuro de si mesmos. Mirando pela escotilha, como no poema de Baudelaire, gozaram daquele infinito os mais cruéis prazeres — pagos a peso de ouro, já agora.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Os nossos fantasmas agitando-se ao longe


O fotógrafo francês Thibaut Derien publicou há já algum tempo o livro J'habite une ville fantôme, agora na origem de uma exposição, o qual é fruto de dez anos de trabalho, entre 2005 e 2015. Thibaut dedicou-se, durante essa década, a fotografar o resultado de anos de negligência política e urbanística num conjunto de pequenas cidades periféricas onde o tempo e a incúria encerraram as portas de milhares de pequenos estabelecimentos comerciais, cinemas ou hotéis. 

O livro e a exposição constituem, se bem o compreendi, um testemunho pungente da realidade de incontáveis cidades em todo o mundo e do imaginário de qualquer pessoa com mais de vinte ou trinta anos, inevitavelmente confrontado, a cada esquina, com a memória do fantasma mudo das padarias, talhos, peixarias, cafés, carvoarias, mercearias ou drogarias de outrora — todos irremediavelmente encerrados ou transformados em alguma coisa mais adequada aos novos tempos, substituídos por super e hipermercados, cadeias internacionais disto ou daquilo, lojas para turista ver.

Quando caminho, ao acaso, pelas ruas da minha cidade, não raro sou capaz de enxergar também os fantasmas das lojas de outrora — da sapataria e do sapateiro, do talho e da retrosaria, da livraria e da papelaria, do ferreiro, do carpinteiro, da oficina —, onde, jovens e tontos, íamos comprar cigarros avulso, aviar uma encomenda de botões ou fechos éclair, comprar meia dúzia de moletes, uma garrafa de Três Marias ou folhear a Gina e a Weekend Sex para memória futura. Vendo-os agitando-se a partir de uma realidade paralela, persuado-me não só de que os tempos mudaram, mas também de que este vai deixando de ser o meu tempo e o meu lugar. 

Desfocando-me devagar, conforme sucede a qualquer outro testemunho do passado, será uma questão de meses ou de anos até que uma fotografia me recorde também como a um fantasma de alguém que passou pelo mundo e de quem já ninguém se lembra.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Apontamentos para memória futura

 A brisa que vem da janela voltada a Norte traz o perfume da figueira e, à noite, as osgas deambulam pela parede à cata do mosquito que me há-de comer vivo durante a madrugada. A flor das tílias incensa o plenilúnio e as andorinhas traçam no ar concretos arabescos que não sou capaz de decifrar. Nas antigas termas, a exposição dedicada aos arquitectos Ernesto e Camilo Korrodi lança uma luz nova sobre as ruas da vila e o seus mais icónicos edifícios. Chegam turistas de todas as cores, de todos os ventos; vêm, como as garotas da escola, comer picolés à cervejaria e fotografam-se segurando os pauzinhos e sorrindo com a pequena e infinita felicidade das coisas simples. Enquanto vejo os painéis da exposição, recordo-me do tempo em que me sentava na sombra do murete de um dos palacetes Korrodi da vila e degustava, devagar, longos cornetos de tangerina. Talvez já o tenha contado algures, mas é provável que um dia destes me esqueça. Fica escrito — para isso serve o domínio tosco da ortografia (e para mais nada, se calhar).

Tristeza não tem fim


Acabo de saber, enquanto procuro não ouvir a horrenda música que dá (mau) ambiente à cervejaria, que morreu Astrud Gilberto. Logo me vem à cabeça a sua voz cantando que a "tristeza não tem fim/ felicidade, sim". Não consigo escutá-la no meio deste chinfrim, nem me atrevo a submetê-la a esta contaminação a que agora se chama música. Mas não falha. Esta noite, quando a madrugada (ou os mosquitos) me despertarem, fecharei outra vez os olhos e escutarei o silêncio completo da casa, o silêncio que me faz pensar que talvez tenha ficado surdo, e aos poucos, devagar, semearei essa pura ausência de ruído com a voz de Astrud. Algo sempre floresce do encontro de duas belezas perfeitas.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O padre que fala com as vacas

É porventura inevitável que um louco reconheça os outros loucos por certos sinais particulares e que entre eles estabeleçam uma espécie de irmandade desirmanada ou uma confraria de sandeus alienados de quase tudo e ainda assim capazes de urdir uma solidariedade pura como as partículas da neblina no alto da serra ou o silêncio da noite na vila.

Acabo, aliás, de ler uma notícia extraordinária: fala de um padre da Serra de Arga, lá no alto Norte, que se filma a conversar com as vacas e as cabras que encontra no caminho, e que benze os animais, e que é tão extravagante que chega a pedir à repórter: "Quando eu morrer, façam uma notícia a dizer: 'Morreu o padre que falava com as vacas".

Jubiloso louco!

Enquanto o lia, ocorreu-me que ainda ontem tentei comunicar com um pardalito com o qual me cruzei no jardim grande da vila; e que, à noite, quando regressava a casa depois da última Barona, pedi desculpa ao gato preto que remexia nos caixotes do lixo da Rua do Mercado por tê-lo assustado com o meu silêncio ébrio. Conto ainda conversar, se não me acudir um resto de bom senso, com as ovelhas que encontro a pastar por trás dos muros quando vou correr em volta da vila. E talvez me veja obrigado a insultar um cão ou outro, desses que me vêm ladrar aos portões quando passo.

Também falei entretanto com alguns animais humanos, é certo, mas estes não contam para esta conta, pois não têm sequer o bom gosto de me ignorar quando converso com eles. Quer dizer: ignorar até ignoram, talvez não façam outra coisa, mas não deixam, ainda assim, de responder ao que lhes digo. Talvez, quando eu morrer, se recordem do estranho lunático do norte que aqui vinha às vezes para ver voar as andorinhas.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Novidades canídeas

 


terça-feira, 23 de maio de 2023

Sem título



quarta-feira, 17 de maio de 2023

Alienígena num universo paralelo


Não é difícil imaginar o que poderia sentir um alienígena se, digamos à hora do lanche, tivesse contacto com a civilização terrestre ou com algumas das suas manifestações mais exóticas, ou se se empenhasse em investigar os nossos hábitos mais arreigados. Eu mesmo, para não ir mais longe, frequentemente pasmo e me confundo perante certas manifestações (digamos) da humanidade, porém tão alheias ao comum, tão estranhas àquilo a que no meu tempo se designava por bom senso — e que Descartes, tão tolo, presumiu ser a coisa no mundo mais bem distribuída. Por exemplo: numa única vista de olhos pelos títulos em destaque no site de um conhecido jornal português, dei hoje de caras com duas notícias que me pareceram ditadas a partir de um lugar longínquo do universo conhecido, de um planeta estranho orbitando alguma das estrelas de Andrómeda. A primeira dizia respeito a um "comediante de Viana", Hugo Soares de sua graça, que terá causado revolta no Brasil por ter produzido uma "piada" sobre uma "Barbie com síndrome de Down". A segunda tratava da "polémica" resultante de um insulto que Tiago Ginga dirigiu "nas redes sociais" a um Zé Lopes. Leio-o uma e outra vez, e pergunto-me, portanto, quem será esta gente, estes hugos, tiagos, barbies e zés, quem serão os indivíduos que os conhecem e atentam à respectiva idiotia; e, enfim, que pasquinagem é esta, que alienígenas, que artificiais ou postiças inteligências tomaram o lugar dos jornalistas e agora se dedicam a reproduzir tais rudezas em instituições que costumavam dar notícias

terça-feira, 16 de maio de 2023

Uma questão de estilo


A célebre frase de Herberto Helder "Se eu quisesse, enlouquecia" é, para lá do efeito que produz, a primeira de um texto intitulado Estilo, que abre o livro Os Passos em Volta. A possibilidade de o autor ou o narrador desse escrito enlouquecerem adquire, deste modo, uma outra dimensão. 

Muitos de nós, e não faltam em alguns dias motivos para isso, poderiam enlouquecer por vontade própria, ou convencer-se disso, e rir ou chorar sem ser por nada, durante muito tempo e à margem de quaisquer regras de convivência social admitidas no círculo dos sãos. Herberto Helder também, desde logo porque sabe "uma quantidade de histórias terríveis". Mas a possibilidade de endoidecer surge, neste caso, como um recurso de estilo, uma sua manifestação, desde logo porque, acrescenta depois Herberto, "o poeta [também] não morre da morte da poesia". 

Seja como for, esse texto termina com a frase "Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu", o que, não duvido, se aplica com muitíssima circunstância aos senhores e às senhoras que ocasionalmente vêm espreitar estes meus toscos escritos. São todos finos e argutos, muito mais lúcidos do que eu, desde logo por, na maioria dos casos, não perderem tempo a redigir prosas que ninguém lerá — afirmação que não deixa, a seu modo, de ser também uma afirmação de estilo. Mas, e conforme escreveu Herberto, "o mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo". Eu não tenho outro. Ou talvez tenha.