Interessa-nos a história da argentina Silvia Labayru, contada no livro La llamada, de Leila Guerriero? Absolutamente. E isto torna ainda mais estranho o facto de não ser ainda possível encontrá-la nos escaparates das livrarias portuguesas (em Espanha, em Janeiro, ia na 14ª edição ao fim de um ano). Conforme escreveu o Valdemar Cruz, trata-se de um livro "raro", "invulgar" e "muito perturbador", mas também urgente num tempo em que se reaproximam do poder os indivíduos que protagonizaram a violência e o autoritarismo que estão na origem do caso de Silvia Labayru.
Silvia é uma mulher real, de carne e osso, mas bela ao ponto de ser descrita como "um acontecimento", cujas convicções cidadãs e políticas levaram a que tivesse sido raptada, torturada e violada pelos militares da ditadura argentina. A narração da sua história obedece ao mais estrito rigor jornalístico (já tão pouco praticado) e não ignora, nem menospreza, as contradições e o exercício do contraditório, nem o humor, nem os momentos tragicómicos e burlescos que compõem qualquer vida humana, mesmo que exposta a situações que, se tivermos sorte, nenhum de nós experimentará.
Sendo um notável exercício jornalístico e biográfico, La llamada é também uma extraordinária peça literária que reconstrói "as coisas que aconteceram e as coisas que tiveram de acontecer para que aquelas coisas ocorressem, e as coisas que deixaram de acontecer porque aconteceram outras coisas". É História, é vida e é uma lição. Mas é bastante provável que ainda não a tenhamos aprendido e que, pelos vistos, prefiramos continuar a viver como se tais coisas não tivessem ainda acontecido e como se não estivessem a acontecer agora - em Buenos Aires, na Europa, em Gaza, na Ucrânia, no Ruanda, nos EUA, em Israel, no Irão, na Rússia, na Síria e em tantos outros sítios da nossa grande casa em chamas.