quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Um homem em chamas

 


Aconteceu esta noite no Porto, segundo o site do Jornal de Notícias: energúmenos desconhecidos pegaram fogo a um homem que dormia na rua, nas redondezas do Hospital Joaquim Urbano, onde os mais famélicos da cidade vão fazer tratamentos de metadona. O caso foi conhecido porque o homem que despertou em chamas se apresentou de manhã para tomar a sua dose de droga de substituição e levava ainda no corpo a camisa chamuscada e as costas em ferida. No canto abrigado onde dorme há algum tempo, deixou, diz o JN, o que resta de um casaco queimado.

Os homens e as mulheres que dormem na rua, meus concidadãos, são a face mais visível de uma miséria que preferimos não enxergar — porque incomoda e nega os princípios essenciais de um estado democrático, social e justo. Vê-los magoa e humilha, revolta e envergonha. Mas um homem em chamas é uma outra coisa. É o sinal de um tempo sacana e torpe, de uma miséria moral, ética e civilizacional que vai fazendo o seu caminho e tem no ódio pelos desvalidos o seu sintoma mais sórdido, a despeito das outras tragédias que ainda estejam para acontecer nos brasis, nas hungrias, nas suécias, nas rússias, nas trumplândias, nas suíças ou nas itálias deste mundo soez.

Há alguns anos, Caco Antibes, personagem caricatural de uma série brasileira de televisão, usava frequentemente a expressão "odeio pobres". Por uma obscena ironia da História, o desprezo pelos mais frágeis transformou-se, neste início de século XXI, numa espécie de regra global a que nem sequer escapam muitos do que são pobres. Os desvalidos, parece, voltaram a servir apenas como carne para canhão de guerras imbecis ou como serviçais mal pagos e disponíveis para esconder o lixo que produzimos. Todos os outros são dispensáveis, demasiados, supérfluos e, por isso, pasto para a recriação dos energúmenos inúteis e ociosos que andam pela madrugada a incomodar quem está quieto e em paz.

Ao contrário do que aconteceu a um homem em Sintra em 2012, a um sem-abrigo de São Paulo em 2020 ou a um chefe indígena brasileiro que há alguns anos pereceu queimado numa paragem de autocarro de Brasília, o homem em chamas do Porto não morreu. Foi levado ao hospital público e tratado, e a polícia investiga a autoria do ignóbil fogo que lhe queimou o corpo. Mas nem hospitais nem polícias serão capazes de atalhar as causas da miséria moral que por aí avança como chama forte em capim seco, este grito que, como numa canção de Chico Buarque, trazemos preso na garganta.