terça-feira, 27 de setembro de 2022

Fantasmas sinistros, os donos disto tudo

 


Um imbecil com demasiado dinheiro — um "empresário" — terá queimado a obra Fantasmones Siniestros, de Frida Kahlo, a qual doravante existirá apenas enquanto NFT. Serão vendidos, parece, 10 mil exemplares virtuais do cripto-artefacto. A pintura original, supostamente queimada, estava avaliada em 10 milhões de dólares.

Embora o site que publicita a horripilante operação informe que o produto da venda dos NFT será destinado a fins filantrópicos, ninguém duvida, creio, que o dito "empresário" ganhará bom dinheiro com a campanha em curso, o suficiente, ao menos, para adquirir mais algumas obras de arte que possam ser artificialmente valorizada até à mais tremenda insensatez.

Frida Kahlo, recorde-se, padeceu durante grande parte da sua vida de uma condição física particularmente incapacitante e dolorosa, na sequência de um acidente envolvendo um autocarro em que seguia quando era jovem. Foi obrigada, por isso, a pintar deitada, creio que sofrendo a cada pincelada, a cada matiz de cor e a cada linha. Mas nunca beneficiou, creio, das imensas fortunas que os fantasmas sinistros que operam no insensato mercado das artes plásticas ganham todos os dias com as suas operações meramente especulativas, inclusivamente mercadejando as obras dela.

Incinerar uma obra de arte de Frida Kahlo constitui, pois, uma falta de respeito pelo sofrimento e pelo trabalho da artista mexicana. Pior do que isso, o dito "empresário" está a negar a própria condição artística, única e irrepetível da obra de arte — de qualquer obra de arte —, postulando, para que não restem dúvidas, que o seu valor decorre, não do objeto em si, mas das transações especulativas a que seja possível submetê-lo. É ele o seu dono, fará o que muito bem entender: queimar, retalhar, fazer puzzles e postais ou fazê-lo render para além de toda a normalidade.

Vendo bem, Fantasmones Siniestros é um título particularmente adequado ao tempo que vivemos. Parece já não faltar muito para que regressem as sessões públicas de destruição de "arte degenerada" ou, pelo menos, da arte que não esteja associada ao enriquecimento pornográfico dos seus proprietários e comerciantes — os donos disto tudo.