quarta-feira, 3 de março de 2021

A maldição de Alberto Manguel

Lembrei-me há dias, enquanto assistia a uma das conversas da edição deste ano do festival literário Correntes d'Escritas, de uma crónica que redigi para um site brasileiro (creio que em 2015), a qual tem por principal protagonista o escritor argentino Alberto Manguel. Publico-a hoje no Teatro Anatómico, tantos anos depois de ter superado a alegórica maldição a que ali aludo, se calhar por já não fazer mais do que escrever, escrever, escrever (ou porque deixei de acreditar na possibilidade de vir a editar as crónicas que outrora escrevi). Que o Alberto Manguel possa perdoar-me, pois, o atrevimento, a indiscrição e a prodigalidade.


O acaso fez com que, há alguns meses, viajasse da ilha da Madeira para o Porto na companhia do escritor argentino Alberto Manguel (autor, entre outros, do genial Dicionário de Lugares Imaginários). Julguei, na altura, que se tratara de uma coincidência feliz. Agora, porém, já não estou muito certo disso, e temo que Manguel me tenha amaldiçoado. 

Tínhamos participado, eu e ele, no último dia do programa do Festival Literário da Madeira, onde o ouvi falar de um Sísifo-escritor, feliz apesar de infinitamente condenado a rolar até ao cimo da montanha a pedra sempre imperfeita da sua obra. Também contou episódios do tempo em que leu os livros que Jorge Luís Borges, cego, já não conseguia enxergar, e em que explicava os filmes que Borges não conseguia ver. No final, questionado sobre o destino da sua biblioteca, invocou o exemplo dos apicultores: quando eu morrer, disse, quero que alguém avise os meus livros de que eu já não volto. 

Depois Manguel, cansado de circular pelo mundo sem ir a casa durante semanas ou meses, pediu à organização do festival que antecipasse a sua viagem para Madrid. Por causa disto, Manguel viajou de madrugada para o Porto no mesmo voo que eu tomaria, ainda com tempo para que eu lhe mostrasse um pouco da minha cidade (que ele apenas conhecia dos cartões postais que uma amiga lhe enviava). A manhã de abril estava soalheira e cálida. A despeito do sono feroz que o assaltava a cada passo, Manguel passeou pelas ruas e quis tomar um cálice de vinho do porto numa esplanada da Ribeira, diante do Douro em cujas águas o sol coriscava festivamente. 

Agora, tantos meses depois de Abril, recordo sobretudo a nossa conversa, de madrugada, no ainda deserto aeroporto da Madeira, enquanto tomávamos café e esperávamos pela hora do embarque. Falámos sobre futebol, cujo fascínio ele não consegue entender, e, claro, sobre livros, aqueles que me influenciaram e aqueles que escrevi – que são talvez demasiados, expliquei, e que em alguns casos podia ter-me abstido de publicar. 

Lento como um sábio, Manguel repetiu uma frase que, creio, certa editora lhe dissera uma vez: enquanto escrevia, devia imaginar que tinha sobre o ombro um pequeno diabo perguntando-me se era mesmo necessário fazer aquilo, escrever mais um livro de que o mundo não tomaria conhecimento. Eu tinha, em Fevereiro, começado a trabalhar naquilo que julgava ser o meu próximo romance. Em Abril, a escrita avançava bem, apesar da falta de tempo, e já conseguia imaginar que o livro ficaria pronto em poucos meses. De então para cá, porém, tudo me tem afastado desse projeto e quase não voltei a escrever. 

Tenho, até agora, justificado a falta de produtividade literária com a falta de tempo e de disponibilidade mental, naturais tendo em conta as obrigações profissionais que assumi no último ano. Mas, quando me recordo daquilo que o escritor argentino me disse, pergunto-me se a minha esterilidade literária não será resultado de uma maldição – da maldição de Alberto Manguel. E se, Sísifo resignado, não terei de desistir de carregar montanha acima a pedra imperfeita de mais um livro.