quinta-feira, 11 de março de 2021

A gente só se ri depois do mal feito — o regresso acidental das crónicas do autocarro











Outros adágios podiam ter sido declamados no 207 das 9h20 de hoje, mas foi este o que escutei quando, na paragem da Rua de D. Manuel II, um passageiro tropeçou ao sair da viatura e se estatelou no chão com alguma graça, não machucando, porém, mais do que um joelho: "A gente só se ri depois do mal feito", disse a senhora dos olhos azuis enquanto se ria por trás da máscara cirúrgica.

Seria possível expender toda uma reflexão ética em torno da ruindade humana a partir do retorcido humor da velha mulher, que levava o cabelo pintado de louro e bem arranjado, e unhas com manicure a preceito, distinta nos anelares do rosa vivo dos demais dedos. Mas não o farei. Também aprecio a pândega e prefiro debruçar-me sobre os benefícios sanitários do riso pós-pandémico, sobretudo porque viajávamos num autocarro quase cheio como um ovo a despeito do confinamento obrigatório. A gestão municipal da STCP reduziu drasticamente o número de viaturas em circulação e há toda uma tribo de técnicas de higiene domiciliária que precisa de se deslocar entre biscates, pois à terceira vaga do vírus já nenhuma patroa permite que as sopeiras fiquem em casa a mandriar.

"A gente só se ri depois do mal feito" há-de ser uma grande verdade, lapidar como um elogio fúnebre e utilíssima à preservação do bom humor a despeito da insensibilidade do vírus, da STCP e das patroas. A divertida mulher ria e não entrou mal nenhum no mundo por causa disto, desde logo porque, na conversa com outra utente dos transportes, a espirituosa criatura esclareceu que também se riria se fosse ela a vítima do pícaro trambolhão. "Se não me magoasse, ria-me", garantiu, demonstrando que a capacidade humana para encarar as adversidades com requinte e desportivismo se mantém incólume, alheia ao elogio do medo e aos bichos-papões da pandemia.

Tanta graça a mulher achou no tombo do outro — que por sorte não bateu com a cabeça no vidro da paragem, "senão partia-o, ah-ah-ah-ah" —, tanta pilhéria, que continuou a rir-se durante muito tempo depois do pitoresco incidente: a rir-se sozinha com tão grandes gargalhadas que os passageiros recém-entrados no autocarro, ignorantes do esbardalhanço do outro, hão-de ter pensado que a velha era chaladinha de todo ou que o confinamento não lhe está a fazer bem nenhum ao toutiço. Tanto assim é que, ao contrário de certo poema, ninguém mais no autocarro sorriu por ver a velha a rir sozinha, nem os outros  riram sem ser por nada. Creio que só eu e a senhora dos olhos azuis estávamos sinceramente divertidos a bordo do 207 — e não necessariamente pelos mesmos motivos.