segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Talvez consiga comprar caramelos










A imagem acima desta linha foi captada há exactos 25 anos, durante a apresentação oficial do meu primeiro livro, "O Homem que Julgou Morrer de Amor / O Casal Virtual", na velha livraria Lello (antes de se ter transformado num vistoso caça-níqueis). Nela figuram, para além deste esmorecido indivíduo, então cheio de certezas e de sonhos insensatos, o livreiro Antero Braga, o escritor Mário Cláudio e a editora Joana Caspurro, da Campo das Letras.

Algumas pessoas, mais amáveis do que o vulgo, tendem a considerar que, em virtude do evento que a imagem documenta, se assinalam nesta data os primeiros 25 anos da minha actividade literária. A conclusão é factualmente correcta, ainda que, quando me detenho a pensar no assunto, me pareça constituir uma espécie de falácia: ao fim de um quarto de século e de quase trinta obras publicadas, cada novo livro sai da gráfica tão desamparado como o primeiro e terá ainda menos leitores do que o anterior. Para além disso, e se um tipo se detém a fazer contas à vida, terá de concluir que os meses ou anos que dedico à criação de cada novo livro terão como retribuição a côdea de umas escassas centenas de euros, as quais, hoje como então, não me permitem pagar, sequer, as contas da água, da luz e do telefone, para não falar do almoço e do jantar, do copo de vinho, do vício das cigarrilhas e dos livros. Ao contrário de há 25 anos, porém, não disponho hoje de uma profissão ou de um mero emprego cujo exercício regular me permita manter sem grandes sobressaltos o devaneio, a inconsequência e a insensatez da literatura.

Os mais atentos estarão a par de que, excepcionalmente, sou neste momento beneficiário de uma bolsa de criação literária com seis meses de duração. Embora quase ninguém no seu juízo perfeito considere que esta actividade constitui um trabalho a sério, trata-se de um privilégio raro e provavelmente irrepetível, pelo que procuro honrá-lo levantando-me cedo e escrevendo ao menos alguns parágrafos por dia. Finda a bolsa, porém, voltarei a ser um desempregado — um desempregado com 50 anos de idade, sem profissão e cujo único vago talento consiste em escrever textos que quase ninguém quererá ler, como sucede, desde logo, com estes que publico no Teatro Anatómico. Ou conforme sucederá ao livro que escreverei no âmbito da aludida tença.

A consciência de que não tenho sido capaz de rentabilizar esta actividade permite-me frequentemente pensar duas vezes antes de perder o tempo necessário para redigir um post cujas considerações produzirão um efeito tão insignificante como o de uma gota acrescentada ao oceano. É muito provável, por isso, que esta mesma noção algum dia me imponha também algum tino no que diz respeito à escrita regular de ficção, tendo em conta que os meus livros, aqueles que faço questão de escrever, constituem, no essencial, uma teimosia incapaz de granjear o interesse das escassas pessoas que ainda desperdiçam tempo a ler livros (independentemente da editora que os publique).

Não se trata, sequer, de uma lamúria. Escrever foi das melhores coisa que me sucederam. Tenho a perfeita noção de que ter sido escritor constituiu uma aventura incrível para alguém cujos avós mal sabiam escrever o nome. A literatura —como o jornalismo — permitiu-me experimentar vidas que, à partida, não estariam ao meu alcance e partilhá-las com pessoas que, de outro modo, nem sequer teriam tomado conhecimento da minha existência (sem que daí lhes adviesse, é bem verdade, algum prejuízo considerável). 

Tenho, pois, uma consciência relativamente exacta do que fiz, daquilo que alcancei — e também do que perdi por não ter sido aquilo que as convenções me aconselhavam a ser. Sei o privilegiado que fui ao ser lido, escutado e até respeitado por pessoas muito melhores do que eu, e também por ter podido dar-me ao luxo de recusar situações e compromissos que violavam princípios éticos que me habituei a respeitar. Estou, pois, grato a todos quantos me publicaram e me leram, sobretudo a estes últimos, por terem sido capazes de criar um inexplicável vínculo com obras que, no fundo, escrevi apenas para mim, para me explicar, expandir ou evadir de uma realidade que, a cada ano que passa, vai apertando o seu cerco e impondo a sua lei.

Não sei o que acontecerá a seguir. Ignorava-o há 25 anos e assim continuo. Talvez venha a publicar-se o livro que resultar da bolsa de que sou actualmente beneficiário. Talvez permaneça inédito. Tenho apenas por certo que, findo este encargo, serei um pouco mais velho e um pouco menos enquadrável no mercado de trabalho. As contas, porém, continuarão a cair todos os meses, todas as semanas e todos os dias, cabendo-me pagá-las regularmente, a tempo e horas, conforme é próprio de gente séria. Mas, ao contrário de há 25 anos, não sei agora como irei pagá-las ou de que vou viver. Sendo quase certo que não poderei contar com a minha "actividade literária" para esse fim, talvez consiga usá-la para, ao menos, comprar caramelos, como diziam que fizesse às gorjetas que me davam quando, em criança, me pediam para ir fazer recados à rua, à Prelada e ao Carvalhido, às vezes à Boavista. Caminhando sozinho e menino pelas ruas do Porto, talvez tenha começado aí a imaginar os livros que depois escrevi — ainda estou escrevendo.