terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Um átomo encontra o corpo de um escritor de novelas e decide redigir as memórias — princípio de uma missão impossível

Eis que posso beneficiar, enfim, de algum sossego após as mil atribulações em que desde o início dos tempos me tenho visto confundido, eternamente em bolandas. 

A existência de um átomo não é coisa amena nem descontraída, bem pelo contrário, condenado, como é da nossa condição, a participar em contínuo na grande azáfama da reinvenção das matérias mais vulgares do mundo. Entre ser grão de pó e luz das estrelas, perdi já a noção de quantas substâncias incorporei no decurso do grande tropel do universo, mas não a sua recordação, pois desde o momento inicial tenho impresso no mais íntimo do núcleo a memória de tudo o que hei-de ser até ao momento em que tudo se extinga e volva a ser nada. 

O mais complexo é contá-lo e incluir nisto alguma ordem inteligível. Um átomo não conhece o tempo: existe desde sempre e para sempre — como se, numa comédia, se condensasse o curso da história num único e ínfimo instante, numa palavra mínima que resumisse tudo. Hu. 

Nesta fracção do ininterrupto em que transitoriamente estacionei, insignificante parcela absoluta no corpo de um escritor de novelas, forcejarei, em todo o caso, por dar sentido e continuidade ao que é amálgama e caos. Redigirei as minhas memórias como se, com voz grave de contador de casos, as narrasse a partir do futuro, de um lapso do espaço-tempo que não existe e é apenas amálgama e quantum, eternidade. 

Era uma vez, pois, o início do mundo ou o princípio da impossível missão de me escrever uma biografia decente de um dos seus átomos.