Num jornal da internet, de cujo nome não quero lembrar-me, leio o título de uma entrevista concedida por um cientista às voltas com a pandemia, na qual, tanto quanto consigo entender pelas poucas linhas grátis que posso ler, se defende o medo — o regresso do medo. De preferência, suponho, esse medo há-de ser medieval e ignoto, mesquinho, subterrâneo, vil e daninho. Um medo opressivo que nos maniete e paralise, e nos impeça de pôr o nariz fora da porta; que nos faça desconfiar do outro, de todos os outros, invariavelmente suspeitos de disseminarem a doença, o caos, o descontrolo ou a loucura (tudo palavras que naquele jornal frequentemente se usam para descrever a situação presente).
Há cerca de um ano que os órgãos de comunicação social não fazem mais nada: semeiam o medo às mancheias e procuram que medre e cresça viçoso. A primeira colheita foi extraordinária. Aterrorizados pelo alarme diário de notícias da pandemia, os portugueses correram a fechar-se em casa como ratos assustados. Comoviam-se com a poesia dos telejornais, aplaudiam os médicos à janela e cantavam Kumbaya. Em algum momento, depois disso, o alívio de perceberem que o mundo não havia acabado num sopro levou os portugueses (e não só) a desconfiar do logro e da manipulação de que haviam sido vítimas. Como na história do Pedro e do Lobo, no dia em que o animal chegou já ninguém acreditou nos avisos do mentiroso. Agora que morrem mais de 200 pessoas por dia à custa da nova doença, os portugueses não querem saber. Talvez, ameaçados pelo Estado, fiquem em casa. Mas fá-lo-ão contrariados.
O medo aflige-me. E revolta-me que alguém o defenda e procure instigá-lo, usando-o para controlar e amesquinhar cidadãos livres e adultos. Prefiro viver num mundo em que, em vez de limitadas pelo medo, as pessoas façam escolhas responsáveis e informadas; no qual os cientistas contribuam para uma comunicação clara e objectiva em vez de passarem os dias a acrescentar ainda mais ruído ao descomunal chinfrim que há um ano nos atordoa.
O medo vai ter de voltar? Antes regressem o bom senso, a cautela e o respeito pelo bem-estar do outro.