quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Carta a quinze jovens leitores

Instigados pelo professor Vítor Fontes, docente de Geografia, quinze alunos de duas turmas do Colégio Paulo V, de Gondomar, leram "Tropel" durante o primeiro período lectivo. Este mês recebi quinze cartas dando conta das impressões de leitura daqueles quinze jovens, as quais me comoveram e impressionaram. Esta é a minha resposta àqueles novos leitores:


Caro professor Vítor Fontes 

Caros e caras Maria Miguel, Catarina, Carolina, António, João, Rita, Beatriz, Filipa, Marta, Maria Sofia, Daniela, Diogo, Guilherme, Miguel e Teresa 

Perdoem-me, antes de mais, que não responda individualmente a cada uma das vossas cartas — que li com toda a atenção e, em alguns momentos, com alguma comoção. Quero que saibam, porém, que cada um dos vossos textos e das vossas reflexões sobre o Tropel constituiu motivo de uma enorme satisfação. Nós, os escritores, escrevemos porque alguma coisa íntima e provavelmente inexplicável nos incita a fazê-lo, mas este processo de partilha só fica completo quando alguém lê o que escrevemos e lhe acrescenta novas perspectivas e novas visões. As vossas leituras foram, por maioria de razão, uma forma de conferir sentido ao livro que escrevi, desde logo por ter podido compreender que cada um de vós percebeu muito claramente aquilo que me levou a partilhá-lo com os leitores: a necessidade de, tendo consciência de um problema do mundo em que vivemos todos, reflectir sobre esse problema, aquilo que o provoca e os efeitos que produz. 

As vossas leituras, e não vos surpreenderá que assim seja, tocam todos os aspectos fundamentais do livro que escrevi e denotam um enorme interesse e um compromisso da vossa parte. Porventura ainda mais tocante foi perceber que o meu livro foi capaz de comunicar e de dialogar mesmo com aqueles que têm a humildade de reconhecer que não eram leitores habituais e que encontraram neste livro um pouco da incrível magia que, um dia, quando eu tinha a vossa idade, me levava a ir para a cama mais cedo para poder dedicar algum tempo à leitura de livros que, de algum modo, se transformaram em parte essencial daquilo que hoje sou como indivíduo e como cidadão de um mundo cada vez mais global e onde, talvez mais do que nunca, seja necessário o nosso envolvimento empenhado, esclarecido e persistente. 

Partilhei já com o vosso professor o meu profundo reconhecimento por quantos, como ele, se dedicam à tarefa de semear livros para colher, com alguma sorte, uns poucos leitores que se dediquem a ler e que, por essa via, se transformem em pessoas mais esclarecidas e mais capazes de intervir no seu contexto social, e de fazer escolhas mais criteriosas e mais ajustadas — mais justas. Quero que saibam que é um caminho difícil e no qual, muitas vezes, se sentirão como perdidos e um pouco sós, conscientes de que a maioria dos cidadãos não sabe, não quer saber e é indiferente àqueles que procuram agitar a letargia reinante e compreender o mundo em redor. 

Enquanto leitores, cada um de vós passou, assim, a fazer parte de uma espécie de sociedade quase secreta de homens e de mulheres com acesso ao segredo mais profundo dos livros, nos quais, com algum critério, nos é possível colher os ensinamentos e as ferramentas que nos permitirão compreender melhor o mundo, viajar por locais que nenhuma companhia aérea visita, conhecer realidades únicas, desenvolver a criatividade, saber mais e viver mais plenamente. Um dia, e se isto continuar a fazer algum sentido, talvez cada um de vós seja também capaz de partilhar este segredo e de ajudar outras pessoas a descobrir o caminho que vos trouxe até ao meu humilde Tropel ou a outro livro qualquer que tenha sido capaz de conversar convosco e de vos revelar outros mundos e outros livros. 

Têm razão. Tropel é, antes de mais, sobre o medo, a insensatez e a intolerância deste mundo e de nenhum universo paralelo da ficção. Cada um de nós tem ou teve algum dia um familiar ou um antepassado remoto que, perante uma situação desesperada ou apenas por ambicionar uma vida mais tranquila, rumou a outros países e continentes, ou apenas a outra cidade, à procura de alguma coisa melhor. É um direito que nos assiste a todos: aos que, um dia, vão necessitar de ser estranhos ou estrangeiros, e aos que, não o necessitando, continuam a ser cidadãos livres e, como tal, habilitados a viver a vida conforme nos pareça melhor e desde que não prejudiquemos a vida de ninguém. 

Os verdadeiros caçadores deste mundo não são as desamparadas personagens do meu livro, mas aqueles que, com poder para isso, impõem a outros seres humanos os limites, as dificuldades e o desespero que os leva a atravessar fronteiras e mares em condições de absoluto risco, morrendo muitas vezes na travessia e sem conseguirem alcançar o sonho de uma vida mais plena, tranquila e livre. 

Escrever ou ler aquilo que outros escrevem é parte deste exercício de liberdade. Ser lido por leitores como cada um de vós é algo mais do que isso. É um absoluto privilégio. 

Entendo ainda melhor, ao ler cada uma das vossas cartas, o quanto devo estar grato a quem, um dia, me mostrou este caminho que agora também vocês começam a desbravar, aos editores que publicaram os meus livros e, acima de tudo, a cada uma das pessoas com as quais pude conversar em silêncio através daquilo que escrevi. 

Profundamente grato pela atenção que cada um de vós dedicou ao meu livro, que agora é nosso, subscrevo-me com o desejo de que nos voltemos a encontrar muito brevemente, seja pessoal e fisicamente ou graças à extraordinária invenção humana da escrita, que permite que dialoguemos, troquemos ideias e reflictamos em conjunto, e não apenas quando tenhamos a felicidade (ou a infelicidade) de viver no mesmo tempo histórico dos nossos interlocutores. Os livros e a palavra escrita permitem-nos conversar também com aqueles que viveram muitos séculos antes de nós e com quem, no futuro, ler aquilo que hoje escrevermos. 

Um abraço para todos do