terça-feira, 5 de maio de 2020

A conspiração que mais nos convém

No estabelecimento aonde todos os dias tenho ido comprar pão e café, ouvi hoje uma mulherzinha comentar que, não fechando bem a mala, o imbecil da Casa Branca lá terá alguma razão quando diz que a culpa disto tudo é dos chineses. A criaturinha, que há-de ser semelhante a milhões e milhões de outros homúnculos que habitam a superfície terrestre e não justificam o ar que respiram, não se dá ao trabalho de usar o único neurónio com que nasceu. Ouve e repete — ainda que só escute a parte que lhe enfiam pela goela abaixo e ignore que ninguém com dois dedos de testa corrobora a teoria da conspiração do celerado de cabelo amarelo; ou ignore que os chineses têm uma teoria semelhante, segundo a qual foram os norte-americanos a atacá-los com um vírus (o que, em termos práticos, até faz algum sentido, já que a China foi o primeiro país afectado pela doença).

Num mundo minimamente são, havia de ser garantido aos cidadãos que nele habitassem o direito a escolherem, pelo menos, a teoria da conspiração que melhor lhes calhasse. Todavia, da paranóia pandémica aliada às maravilhas dos algoritmos internéticos parece resultar que às pessoas seja negado o mais básico acesso ao catálogo completo das conspirações. Os bichos humanos comem apenas a conspiração que as redes sociais lhes enfiam pela goela abaixo, repetindo mil vezes a mentira do momento até que estejamos todos capazes de odiar o estrangeiro chinês (do mesmo modo que, noutro tempo, se preparou a consciência alemã para que os campos de concentração e morte parecessem uma coisa normal; do mesmo modo que não há muitos anos se criou a mentira do arsenal nuclear iraquiano para que outro anormal republicano pudesse ganhar uma eleição presidencial; do mesmo modo que, antes do vírus, o perigo chinês vinha da espionagem informática; do mesmo modo que...).

Para que o trabalho de xenofobização seja ainda mais eficaz, os media tradicionais ocidentais — e os supostos "jornalistas" que neles trabalham — mostram-se absolutamente cooperantes com a tragédia em curso e disponíveis para serem meras caixas de ressonância do doido de Washington e dos respectivos delírios. Na verdade, os meios de comunicação social parecem muitíssimo empenhado em imitar as redes sociais e em difundir os soundbytes de qualquer fascista ou qualquer alarvidade que esteja "a dar" no twiter ou no facebook, aparentemente incapazes de perceber que, para ter acesso à mesma bosta que gratuitamente circula "na rede", ninguém no seu perfeito juízo vai estar a gastar um cêntimo que seja para sustentar um jornal.


P.S: a quem possa ter achado que o teor do texto acima peca por algum exagero, veja-se esta pequena demonstração do doce mundo de maravilhas que havia de emergir da crise pandémica.