domingo, 29 de março de 2020

Pega rabuda

Calmai-vos, cafajestes. O título desta humilde prosa pretende apenas prestar tributo a uma bonita ave que tem vindo visitar o deserto da praceta, depenicando aqui e ali antes de alçar vôo num assombro de penas negras, brancas e azuis. Pode parecer assunto de pouca monta, mas a pega-rabuda faz muitíssima companhia aos confinados com fracos pretextos para andar na rua a tentar romper os cercos policiais e que, por isso, se deixam ficar na varanda a tragar o fumo das últimas cigarrilhas e a tomar o sol que aqui chega enquanto as árvores se vão cobrindo de folhas novas. A despeito da pandemia e do alarme instalado, a Primavera mantém intactos os seus naturais encantos e os melros continuam a acamaradar nos galhos indiferente ao susto pandémico.

Por falar em galhos, lembro-me daqueles em que, tão coloridos, costumam medrar os limões. Os dois espécimes que alguém gentilmente me deixou à porta de casa estão, como creio que importa ao rigoroso cumprimentos das normas sanitárias, a cumprir o período obrigatório de quarentena compulsiva, na medida em que não estou em condições de garantir que se tratem de frutos nacionais, nados e criados em solo pátrio e, por isso, isentos de vírus estrangeiros. A própria garrafa, alegadamente de origem escocesa, manter-se-á proscrita e sujeita a um férreo regime de isolamento social, não suceda, conforme me foi já sugerido, ser parte constituinte de uma pérfida bomba de covid, uma granada pandémica destinada a deflagrar entre as minhas mãos, tão ingénuas e incapazes de se precaverem contra os inimigos invisíveis que se amoitam sordidamente, à espreita, a cada passo, a cada instante, da ocasião propícia para envenenar o sangue deste trágico escriba sem remuneração.

Não deixo, bem entendido, de estar grato e reconhecido ao autor ou autores da mui generosa oferenda, quais reis magos da caverna onde me refugio. Mas é como diz um vizinho meu que até deixou de correr nos montes, equipado a rigor, e que agora só abandona o pulcro esconderijo do lar para trazer um detalhe canídeo a obrar na rua: é preferível não correr riscos desnecessários. O seguro, já se sabe, morreu de velho e não consta que tenha contraído o bicho ruim que agora por aí transita.


P.S.: o atentíssimo Jornal de Notícias anuncia hoje, ao menos na sua versão online, que, em França, o Covid-19 fez a primeira vítima entre a realeza. Talvez valha a pena que alguém informe o matutino de que a França é uma república há já algum tempo. E por falar em monarquias: como estará a saúde do rei dos frangos?