sábado, 28 de março de 2020

Desinfecção e gratidão

Respiro agora um ar puríssimo quando corro pelas ruas da cidade. Encho os pulmões em grandes sorvos e também os olhos com as vistas quase completamente desimpedidas dos turistas e dos indígenas que costumavam atravancar-me os caminhos mais apertados. Posso usar o asfalto sem carros para correr, dono do espaço e do tempo, do vento e dos reflexos na água do rio. Atravesso as pontes sobre o Douro, de uma margem para a outra, e desfruto como nunca de uma vista de pássaro, limpa. Devo, de algum modo, agradecê-lo ao vírus que aí anda, pois de outro modo não beneficiaria desta plenitude, desta cidade ancha e bela, nem provavelmente dos leitores que tenho, estejam eles onde estiverem. São poucos, é certo, mas são os melhores leitores do mundo. E tenho provas. Hoje, ao regressar a casa, alguém que havia lido o meu lamento gemebundo de constipado, o queixume pela má qualidade do whisky que comprei e pelo esquecimento dos limões para a suadouro, teve a extrema simpatia de me deixar à porta uma garrafa de J&B e dois citrinos de aspecto impecável. Da minha caverna de pessimista recalcitrante acendo, pois, um círio de ilusão e envio um abraço simbólico — distante e isolado como convém, mas profundamente grato ao portador daqueles dois produtos capazes de garantir, agora sim, a eficiente desinfecção, interior e exterior, deste alquebrado animal pandémico. Prometo, naturalmente, não abusar de tamanha generosidade nem passar a publicar no Teatro Anatómica a lista completa das minhas compras de sibarita pelintra.