segunda-feira, 30 de março de 2020

Acabar com a tosse

Não tenho hoje vontade nenhuma de escrever uma nova entrada nesta espécie de diário pandémico, desde logo por ter despertado com a chuva percutindo nas janelas e não ter assim tanta graça ficar em casa por força deste vento daninho. Nem à varanda se está a gosto, pois nenhum sol vem aquecer a meditativa fruição da cigarrilha. As ruas, de resto, estão ainda mais vazias do que tem sido costume, varridas pela ventania e mais tristes, se é possível imaginar ainda alguma coisa mais inóspita do que uma cidade sem gente. Escasseiam mesmo os indivíduos passeando os seus animais domésticos e as inevitáveis neuras do confinamento, o que há-de regozijar bastante os rigorosíssimos fiscais da pandemia. Impossibilitados de cumprirem a sanitária função de controladores e bufos dos cidadãos que passam demasiado tempo a passear a trela e daqueloutros que, pasme-se, descobriram repentinamente os benefícios do exercício físico apenas com o fito de ludibriarem as autoridades, a brigada SS da pandemia há-de agora estar a aborrecer-se muitíssimo. Estou certo, porém, de que encontrarão rumores e notícias falsas suficientes para manter acesa a chama da partilha de imbecilidades nas redes sociais, o que provavelmente os distrairá do mundo real e, desde logo, do caso daquele horroroso viajante a quem foi tirada a tosse no aeroporto de Lisboa ainda antes de que algum sintoma covídico nele se manifestasse. Talvez os fiscais do isolamento social não tenham também reparado que, nas últimas 24 horas, o aumento do número de novos casos da doença em Portugal corresponde a um crescimento de apenas 7,5%, muito abaixo, creio, das expectativas mais optimistas. Embora os jornais, noticiários e programas de entretenimento se comprazam em dar voz a gente para a qual tudo estará sempre à beira da catástrofe e da ruptura, do caos e do apocalipse, tenho a sensação de que, bem vistas as coisas, as autoridades sanitárias competentes e o tão denegrido Sistema Nacional de Saúde não estarão, afinal, a dar assim tão má conta deste recado. Mas isto, se calhar, é uma coisa só minha. Já sabem que sou um bocado maluco.