terça-feira, 31 de março de 2020

Lavar as mãos

Há na cidade um enorme silêncio, creio que já o escrevi, e também alguma coisa que faz pensar nas paisagens desoladas, de ruína, que W.G. Sebald descreve em alguns dos seus livros. Sobretudo agora que o céu se pôs cinzento como nas paisagens e nas charnecas do Suffolk, e, conforme escreveu Marguerite Poradowska, a tia de Konrad, a vida se assemelha a uma tragicomédia em que cada qual tem de desempenhar o seu papel. "Beaucoup de revés, un rare éclair de bonheur, un peu de colère, puis la désillusion, des années de souffrance et la fin".

Confinado bufão, releio Sebald e, conforme os melancólicos pescadores de solha que acampam a sul de Lowesoft, desejo também assentar num sítio onde tivesse o mundo atrás das costas e na frente apenas o vazio: um rincão onde não chegasse o silêncio da cidade esvaziada pelo alarme pandémico, a histeria ruidosa e incompreensível dos alarmados de serviço, as torpezas de sempre e certas histórias tristes, como a notícia de que a filha de um homem decente acima de todos os outros ganha a vida a fazer limpezas no Luxemburgo e apenas se tornou visível à custa das consequências do surto covídico, as quais, bem se vê, nunca são iguais para todos.

Também, como Sebald, não sei muitas vezes por que continuo a escrever, "se por mero hábito ou por procurar prestígio, ou porque não aprendi a fazer outra coisa, ou por a vida me deslumbrar, por amor à verdade, por desespero ou por indignação, tal como não sei se escrever me torna mais sensato ou mais tolo". Esta manhã, caminhando insensata e transgressivamente numa avenida vazia, parei para ver uma mula a comer as florzinhas brancas e primaveris que nasceram na erva da beira do passeio. Algo deslumbrado com a tranquilidade do animal e completamente tolo, isto é quase certo, lembro-me do que diz a filha de Salgueiro Maia, do orgulho que tem no trabalho limpo que faz, e penso nos ofícios porcos de certa gente que passa a vida remexendo em lixo e lodo e apenas metaforicamente suja as mãos ou os brancos punhos das camisas.

Outra vez cogito que as pessoas com orgulho no seu trabalho, briosas da tarefa bem feita, não necessitam de que as aplaudam da varanda ou de serem protagonistas das campanhas de relações públicas dos respectivos patrões. Hão-de, suponho, preferir que as tratem dignamente e que dignamente lhes paguem o essencial trabalho que asseadamente executam. Vivêssemos todos assim e não seria preciso lavar as mãos tantas vezes.