sexta-feira, 27 de março de 2020

Vamos ficar todos bem?

Graças a uma tradução infeliz do original italiano (andrà tutto bene), as janelas do prédios e alguns outdoors municipais vão-se enchendo com cartazes naif assegurando que "vamos ficar todos bem", enfeitados por arco-íris pintados por crianças aborrecidas. Trata-se, bem vistas as coisas, de uma forma relativamente eficaz de ocupar alguns minutos do isolamento social com os velhos e ultrapassados trabalhos manuais e também um modo de manter o ânimo com pensamentos positivos, que bem são necessários, por muito que os cartazes não consigam garantir a vida eterna aos enfermos ou o emprego àqueles que o vão perdendo. Sendo óbvio que nem todos vamos ficar grande coisa e que até há gente morrendo por vários motivos, é possível que, no fim do alarme pandémico, a normalidade regresse e fique, afinal, tudo apenas tão bem quanto seja possível.

Para além do otimismo pandémico, outra das tendências destes dias de emergência é o reconhecimento do trabalho realizado pelos heróis que mantêm a funcionar os serviços básicos da comunidade. Há, claro, os aplausos à janela para o pessoal médico, mas também se vão produzindo belos anúncios publicitários de homenagem aos funcionários dos supermercados, aos agentes de segurança pública, aos agricultores que continuam a produzir alimentos, às operários de fábricas que se mantêm abertas e aos trabalhadores da limpeza urbana, só para referir alguns exemplos. Alguns destes tocantes momentos mediáticos são, refira-se, pagos a empresas de marketing e publicidade pelos mesmos grupos económicos que consideram razoável que um trabalhador tão essencial e heróico viva um mês inteiro com 650 euros de ordenado (ou pouco mais). Ou muito me engano ou também estes denodados trabalhadores acabarão por não ficar todos assim tão bem no momento em que a vida regressar às ruas. Vão continuar tão mal pagos como agora e, nalguns casos, a ser despedidos ou ameaçados por terem sentido a urgente necessidade de fazer xixi durante os inflexíveis horários laborais que lhes são impostos.