segunda-feira, 16 de março de 2020

Cidade vazia

A cidade parece o cenário de um filme triste, de um filme em que é possível sentir o vento roçar-se pelas esquinas. Os poucos transeuntes cruzam-se com as cabeças baixas, com os rostos protegidos por lenços, apesar de o ar ser transparente e puro, quase tão silencioso como imagino que tenha sido no princípio do mundo. Atravessei-a de uma ponta a outra em carruagens quase vazias do metropolitano, em autocarros onde é proibido passar perto dos motoristas, agora solitários e melancólicos como se conduzissem vastos camiões por estepes geladas. Caminhei à vontade por estas ruas sem carros e sem gente, pela corrente sanguínea das portas fechadas, e fui fazer análises clínicas, não estranhando já as máscaras cirúrgicas diante dos rostos, as luvas de borracha nas mãos, os gestos suspensos como que à espera que outros os executem e arrisquem o fatal contacto com os invisíveis miasmas que hão-de agora estar em toda a parte, atocaiados como coiotes, malévolos como lobos, traiçoeiros como vespas. Nas notícias, os fascistas acham que tudo isto é ainda pouco. Exigem medidas "mais musculadas" e querem fechar as fronteiras, impôr a lei marcial e ver a tropa na rua, provavelmente por terem a esperança, nem sequer secreta, de que, uma vez na rua e armada, a tropa possa ter a tentação de aproveitar para algo mais, para um daqueles golpes que antigamente depunham governos e mudavam regimes pela calada da noite, talvez escolhendo um dos muitos fantoches que já fazem fila e se acotovelam, procurando parecer o mais securitário de todos e o mais patriota, o mais musculado e o mais troglodita. Com medo de uma doença que talvez não seja muito pior do que uma gripe, as pessoas baixam a cabeça, encerram-se insensatamente em casa e batem cegamente palmas à ordem de uma qualquer corrente nas redes sociais, indiferentes já à emergência climática que estava para acabar com o mundo, à roubalheira angolana, às liberdades de Hong Kong, à destruição da Amazónia, ao terrorismo islâmico ou à nova vaga de refugiados de uma das infindáveis guerras semeadas a eito em países muito desgraçados. O público não quer ouvir nem pensar, tapa as orelhas com os punhos enluvados com látex, e exige muros, exige fronteiras armadas, exige que se faça num Estado de Direito o mesmo que fazem os ditadores chineses; o público encolhe-se a um canto à espera de que o vírus (mais eficaz do que mil terroristas) desapareça. Emboscados como crianças perdida na floresta, ameaçados por todo o tremendo ruído que o mundo produz e à espera de que o dia dissipe as sombras e não traga monstros ainda maiores, ainda mais ruins, vivemos — agora sim — com medo. Aonde vai o tempo em que nos dizia que era necessário resistir-lhe a todo o custo?