quarta-feira, 18 de março de 2020

Esta cidade onde se ouvem os pássaros

Agora, na cidade, o trinado dos pássaros escuta-se a qualquer hora do dia, mais poderoso e belo do que os roncos dos motores de explosão, do que o zumbido lúgubre dos ares condicionados. É possível atravessar as ruas fora dos zebrados destinados aos peões, parar na faixa de rodagem para respirar e ver o trânsito das nuvens, meditar à toa na via pública como velhos sábios gregos alheados da realidade e da ditadura das coisas práticas. As longas avenidas estão quase vazias, como vestígios de uma civilização desaparecida. Nas esquinas, alguns cidadãos ainda se cruzam caminhando velozmente, mas já não falam, nem sequer se olham, embotados nas suas máscaras faciais, receosos do vírus que talvez circule em sítios inimagináveis e esteja, invisível, pairando no ar primaveril e limpo. São como autómatos, as pessoas, desapossadas do dom da fala, do livre arbítrio, da força da palavra. Apenas as crianças parecem desfrutar deste tempo quase morto, deste desperdício de espaço onde já quase nada se circula e vive. Pela tarde, quando a prisão das paredes se torna intolerável, os petizes vêm à rua pedalar em triciclos e saem para as varandas dos prédios. De um edifício para o outro, redescobrem o rosto dos vizinhos e a emoção das velhas batalhas navais. Oito C, dispara um do prédio em frente. Água, regozija-se o que viu o tiro cair perto de um contratorpedeiro de tinta na folha de papel quadriculado (agora inútil para as coisas da matemática). Noutra varanda, sobrepondo-se ao gorjeio dos pássaros, uma mulher explica ao telefone os procedimentos correctos para a lavagem profilática das mãos. Já que temos todos de morrer depois de amanhã, ou no dia seguinte, privados de ar puro e de vitamina C, que ao menos levemos as mãos limpas lá para onde nos quiserem conduzir os donos do estado de emergência.