quarta-feira, 4 de março de 2020

Cegueira

Há algo de sortilégio feliz quando o gesto guia a mão de regresso a um grande livro há muito quieto nas estantes, empoeirando-se e ganhando manchas de humidade.

Tenho ultimamente revisitado amiúde velhos romances lidos há muito, redescobrindo as palavras e os enredos, as personagens, algum do prazer que recordava associado a certas leituras e também o desconforto de me escapar agora o que me tinha impressionado antes. Talvez a isto se chame envelhecer: preferir o conforto das boas coisas conhecidas ao salto no vazio dos livros novos de que amanhã ninguém se lembrará.

Foi ainda assim por coincidência que, há dias, retirei da estante o Ensaio sobre a Cegueira, nele reentrando agora, por ironia num momento em que outra peste monopoliza os telejornais, ainda que não sejam as gentes menos cegas ou menos brutas do que haviam de parecer a Saramago quando imaginou a metáfora da cegueira branca, leitosa, fulminando as pessoas e devolvendo-as à selvajaria torpe da nossa essência.

Digamos que à cegueira do costume, à ignorância e à insanidade próprias deste tempo, se juntou agora o episódio pitoresco de um vírus novo viajando e reproduzindo-se nos interstícios da web muito mais rapidamente do que nos meandros da biologia, amedrontando muito para além do razoável, ocupando todo o espaço mental disponível, ao ponto de os governos decidirem medidas de excepção, fumigações, trajes de ficção científica, recolhimentos e quarentenas que parecem coisas de romance. Mas já ontem, de certo modo, aqui escrevi sobre isto.

Leio, enquanto espero que a histeria passe, o Ensaio sobre a Cegueira, o horror e a ruindade pura e radical que nele há, também a bondade e o heroísmo, e parece-me ainda mais ridícula essa nova peste que aí anda, e pusilânimes todos quantos alimentam a paranóia e o medo. Às vezes, optimista, ainda me pergunto se não terão consciência do que fazem, das consequências que desta cegueira já se vão fazendo sentir. Mas depois desengano-me com a certeza de que o estão fazendo deliberadamente e com objectivos muito bem definidos.

Só não vê quem prefere ser cego.