terça-feira, 3 de março de 2020

A quarentena do medo

Encontro-me em recolhimento doméstico por ter estado em contacto, faz hoje 11 dias, com um indivíduo que veio a ser diagnosticado com a doença provocada pelo novo coronavírus. Estou, todavia, de perfeita saúde, obrigado, e, tanto quanto sei, nenhuma das dezenas de pessoas com quem mantive contactos sociais nos dez dias anteriores manifestou quaisquer sintomas da enfermidade.

O isolamento parece-me, assim, um manifesto exagero. Mas compreendo-o pela histeria mediática gerada em torno de uma doença nova e ainda pouco estudada, mas que, ao que tudo indica, é muito menos perigosa do que a gripe comum. À hora a que escrevo este post, o site Worldometers indica que este ano já morreram mais de 83 mil pessoas em todo o mundo devido à gripe sazonal, havendo apenas registo de 3.120 vítimas do covid 19. Ainda assim, a nenhum dos engripados são impostas quaisquer restrições.

Pelo mesmo motivo, a histeria, compreendo também o facto de, quase dois dias depois, ainda não ter sido contactado pelo delegado de saúde que, segundo a linha Saúde 24, deveria avaliar a minha situação. Hão-de ter milhares de outras pessoas para atender, com sintomas reais e dúvidas legítimas que pretendem ver respondidas.

Não há, pois, motivos para preocupações excessivas. Tenho, enfim, tempo para regressar ao Teatro Anatómico, para ver a chuva pela janela e imaginar frases que talvez acabem compondo um livro, um poema ou um desabafo, ainda que, não sendo totalmente imune à paranóia instalada, não seja capaz de ignorar que passei dez dias estando com gente, conversando e rindo, ignorante de que poderia estar a contaminá-los com o miasma da moda; e que não sei agora o que devo dizer-lhes ao certo. Talvez tenham medo e julguem, com alguma razão, que esse é um motivo mais do que suficiente para que também lhes seja prescrita uma quarentena que os afaste da histeria, do trânsito, da chuva, dos inúteis cursos de formação profissional para desempregados e de todos os outros aborrecimentos quotidianos.