sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Quando eu me matar batam em latas

A múmia de Boliqueime rastejou esta semana para fora do sarcófago dourado onde transcorre a sua opaca existência de morto-vivo. Veio das trevas para, ruminando tolices, se juntar ao coro dos moralistas bafientos que sempre estão procurando mandar nos outros, na vida dos outros, proibindo e proibindo, e proibindo, não abortarás, não cobiçarás a mulher do próximo, não eutanasiarás, não comerás carne nos dias santos, e cuja posição se resume ao seguinte: a vida não é referendável, mas, se é para estorvar quem deseja morrer em paz e com dignidade e aqueles que estão dispostos a não meter o nariz na vida alheia, então faça-se o referendo.

A cáfila dos leigos defensores da vida é, no essencial, constituída pelos mesmos que diabolizaram a possibilidade legal de as mulheres recorrerem à interrupção voluntária da gravidez (ou, em tempos mais recuados, a possibilidade de a Terra orbitar em torno do Sol). Embora desmentidos pela realidade dos números, que demonstram que a legalização do aborto fez diminuir o número de casos, os beatos moralistas contam desta vez com a companhia das múmias soviéticas e com a cara de pau do doutor da Ordem dos Médicos, sempre disposto a olhar para o lado quando os clínicos matam por negligência, mas implacável contra aqueles que ponderem ajudar um paciente a acabar a vida sem sofrimentos desnecessários e sem estarem ameaçados pela lei.

Apesar das frases impactantes com que estes carunchosos tentarão enganar os tontos do costume, os defensores da morte medicamente assistida não pretendem obrigar ninguém a morrer contra a sua vontade. Querem simplesmente o respeito pela liberdade individual de quem, sofrendo mais do que aquilo para que está preparado, quer pacificamente desistir de viver, tomando a própria vida nas próprias mãos e fazendo dela aquilo que melhor lhe aprouver.

Ignoro se há, de facto, uma maioria parlamentar capaz de aprovar uma lei capaz de respeitar a liberdade de cada um. Caso tal não aconteça, não pretendo exaltar-me demasiado. Quando e se chegar a hora de ter de decidir a minha própria morte, pretendo tomar uma decisão consciente e indiferente ao que estiver escrito na lei. Se for capaz de ser eficiente, estarei morto e nada me poderá importar menos do que a opinião alheia sobre a origem e o fim da minha velha carcaça.

Nesse dia, e como diz num poema, façam o favor de bater em latas.