quinta-feira, 2 de agosto de 2012
Por causa de um conto
Indivíduo perfeitamente capaz de ficar quieto no meu canto, aproveitei ontem para, enfim, terminar um conto que há muito tinha imaginado, mas que preguiçosamente adiava, talvez porque soubesse perfeitamente que o conto que viria a escrever não seria sequer aparentado do conto que havia pretendido escrever. Ainda nem sequer o reli, tal o receio que tenho de constatar que nem mesmo vagamente se assemelham o conto terminado e o conto desejado, e prefiro, em vez disso, ficar a invejar ferozmente a vida daqueles que, a esta hora, hão-de estar tomando o sol na pele em paragens quentes e, decerto, distantes, despreocupados da vida, da crise, da austeridade, dos super-administradores e das suas marionetas políticas. Leio, em vez disso, coisas dispersas, a crónica do Pina, a crónica do Millás, e páginas de um livro que os meus filhos me deram quando fiz 41 anos; vejo o filme que parece inspirado na incrível história do Ivo (sem perceber porque substituíram a poesia pelos acordes de uma guitarra)e saio, às vezes, para tomar café e desenferrujar os joelhos e a articulação do tornozelo, que, quando me movo, estala como os móveis velhos tomados pelo caruncho. O conto, se bem o recordo, é sobre o desafio de fazer as coisas de forma complicada, ou do modo menos simples possível, e pode ser como um capítulo perdido d'As Sereias do Mindelo, a história abreviada do homem por causa de quem Irene foi forçada a regressar às ilhas aonde eu nunca mais voltei. Trata, dizia, de uma forma complexa de fazer coisas tão simples como caminhar e tocar saxofone, mas, paradoxalmente, é provável que eu fosse a pessoa menos indicada para escrevê-lo. Fico no meu canto escrevendo e, se o tempo melhorar, indo tomar sol a sítios que não distem mais de quinze minutos desta mesa, quando podia perfeitamente gastar o que tenho e não tenho numa viagem complicada com muitos quilómetros, portagens, bombas de gasolina, check-in em hotéis, ou então milhas aéreas, transbordos, detectores de metais, vistos e coisas assim, apenas para concluir que seria quase a mesma coisa se ficasse em casa a escrever contos que, depois, quase ninguém vai ler.