domingo, 5 de agosto de 2012
O Lázaro da maratona
Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 29 de Julho
Lázaro, vem nos dicionários, é sinónimo de “pessoa desastrada”, “pouco habilidosa”. Em ano de Jogos Olímpicos, Lázaro é também o nome do antigo atleta português que a imprensa ciclicamente evoca, pois há apenas uma coisa tão grandiosa como a glória do triunfo: o mais estrepitoso e miserável dos fracassos. No maratonista Francisco Lázaro, que integrou a comitiva olímpica portuguesa nos jogos de 1912, em Estocolmo, o nome que carregava parece, assim, ter sido uma espécie de presságio para aquilo que lhe veio a acontecer: morreu há cem anos e duas semanas, enquanto disputava a maratona olímpica, por, de forma desastrada, ter coberto o corpo com sebo com o fito de evitar a perda de líquidos.
Rezam as crónicas que Lázaro iniciou bem a corrida, no pelotão da frente, mas que foi sucessivamente perdendo posições. Insistia, ainda assim, que estava bem. Ao quilómetro 29, na colina de Öfver-Järva, o maratonista começou a cambalear e caiu diversas vezes. Mas levantava-se a continuava a prova – até que tombou definitivamente inanimado. Morreu na madrugada seguinte, vitimado pelo sebo que impediu a transpiração da pele.
Homenageado na cerimónia de encerramento pelo próprio Barão de Coubertin, criador dos Jogos Olímpicos modernos, o desastrado Francisco Lázaro conquistou uma imortalidade tanto ou mais perene do que a alcançada por Carlos Lopes quando cortou em primeiro lugar a meta da maratona na olimpíada de Los Angeles, 72 anos depois. Conquistou até um lugar na literatura portuguesa quando, em 2006, o escritor José Luís Peixoto recuperou a louca corrida do maratonista no romance Cemitério de Pianos, premiado em Espanha no ano seguinte.
O livro conta a história de um homem que, “depois de passar os dias inteiros a fazer portas e janelas, bancos e mesas, a sonhar com pianos, (...) fechava o portão da oficina e corria pelas ruas de Lisboa, contra as ruas de Lisboa, corria e rasgava as ruas de Lisboa” a caminho do mais glorioso desastre do olimpismo português. Chegava sempre à frente – excepto em Estocolmo. Enquanto avança pelas ruas da capital sueca, Francisco Lázaro evoca o seu quotidiano na carpintaria, a vida com Marta, a esposa, o bairro de Benfica por onde passavam carroças, automóveis, pessoas e pombos, um piano consumido pelo fogo. Vê, ao longe, os outros maratonistas, antigas “crianças a correr sem medo”, e sente como o ar ferve ao entrar no seu corpo. “Respiro ar a ferver”.
Ao quilómetro 29, “o céu desfaz-se sobre Estocolmo”. Lázaro não sente as pernas e o seu corpo é outra coisa que se imola no lugar do seu corpo. Depois o atleta cai: “pedras: a minha face assente sobre a estrada, o mundo turvo a partir dos meus olhos, a minha boca a sorver pó, as minhas pernas queimadas, brasas”. Agoniza enquanto “o tempo passa em Benfica, o silêncio passa sobre o cemitério de pianos”, e morre quando, em Lisboa, lhe nasce o filho que a ficção engendrou.