domingo, 26 de agosto de 2012

A melhor fotografia da cidade



Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 19 de Agosto

Perdi já a conta ao número de vezes que subi os degraus estreitos que conduzem a essa espécie de paraíso que é o Núcleo Museológico António Pedro Vicente, no Centro Português de Fotografia, instalado na antiga Cadeia da Relação do Porto. Evito fazê-lo com muita regularidade – seguindo, aliás, a mesma dieta que suponho seja prescrita aos diabéticos viciados em chocolates, desaconselhados de passar à porta de bomboneiras e de lojas de gomas –, mas, ocasionalmente, cedo à tentação. Entro e percorro com o olhar (julgo que febril) a parte visível da colecção de cerca de quatro mil câmaras e equipamentos fotográficos que, desde 2001, faz parte do património da cidade. Bem sei que ainda há gente (pequena) que desdenha da Capital Europeia da Cultura que o Porto acolheu naquele ano, mas, por mim, basta-me entrar naquelas salas para que o evento todo tenha valido a pena, já que até a meticulosa reabilitação do antigo edifício penitenciário, a cargo de Eduardo Souto de Moura, apanhou a boleia da Porto 2001.

Subo, pois, mais uma vez, os dois lanços de degraus de granito que levam à exposição (acrescentada, desde 2008, com um conjunto de doações de Jorge Ribeiro) e deixo-me andar por ali maravilhado, olhando tudo com um misto de cobiça e inveja, desejando ter em casa nem que fosse, ao menos, uma décima parte daquelas relíquias da óptica. Fixo o brilho encerado das folding de madeira grandes como móveis, com os seus grandes foles tensos como bandonéons, e vou, depois, repetindo os nomes escritos nos cartõezinhos identificativos, olha o primeiro modelo da Leica, olha esta Rolleiflex de objectivas gémeas, e mais esta, e esta. Sigo para a vitrina dos caixotes de madeira, o do doutor Rodolf Krügener, o de Emil Wünsche, o da Eastman Kodak de 1914, e ainda para o expositor das câmaras em miniatura e para o das máquinas fotográficas dos espiões, dissimuladas em relógios, maços de tabaco ou isqueiros, e para o mostruário das Zeiss. Daqui continuo, mais ou menos ao acaso, para as pequenas portáteis da década de 1930, incluindo a Baby Brownie, a Kodak Vest Pocket e a italiana Filma, de 1936, e só depois, em contramão cronológica, passo diante das cintilantes estereoscópicas dos pioneiros, da Thomas Ross de madeira de 1850 à Trivision de 1950.

Também acho sempre muita piada, por mais vezes que a veja, à Escopette de 1888, uma câmara suíça com uma coronha e um gatilho, que se dispara como se fosse um revólver. Se outros motivos não tivesse para esta especial predilecção, ver esta câmara implica que entrei já na antiga enxovia de São João, a cela onde Camilo Castelo Branco esteve detido por adultério, redigindo aqui as suas Memórias do Cárcere e, por exemplo, diabolizando a elevada arte do ósculo: “Entendo que beijo pode ser acto inocente, mas não pode ser nunca limpo e asseado. É um contacto de extrema materialidade, com toda a sua grosseria corpórea”. Pobre Camilo e pobre Rosinha, virgens ambos de beijos, ou perto disso. Não lhes invejo essa triste condição, nem o confinamento forçado do escritor, ainda que, neste caso, o cárcere apresentasse óbvias vantagens: ao fundo da enxovia, aos quadradinhos, o Porto apresenta-se numa das suas mais gloriosas versões, estendendo-se, ancho, da Vitória à Sé, de Santo Ildefonso a São Nicolau. É um postal ilustrado impressionante, vívido, cheio de luz – e nem carece de câmara fotográfica nenhuma.