Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 24 de Junho
Se ainda houver, como parece que vai havendo, algum espaço para o amor e para o sonho nos intervalos do triste reinado da contabilidade e das finanças, talvez faça algum sentido que se abra no lado diurno da Baixa do Porto, entre bancos e repartições, um cafezinho diferente do habitual e totalmente dedicado às coisas delicadas da paixão. Um espaço como o Innamoratti Caffèe e Tè, onde os tectos arqueados estão decorados com frescos representando episódios da lenda que uniu Cupido e Psiché (ou Psiquê) nas altas nuvens do Olimpo, e as mesas lacadas em branco, como as cadeiras, têm textos evocando esse amor extraterrestre.
O Innamoratti fica num edifício pequeno onde outrora funcionou uma lojinha de cacos, ao lado do Pedro dos Frangos. É na Rua do Bonjardim (número 304), que já foi o início da estrada que ia do Porto para Guimarães. Houve uma época em que a zona era frequentada pela alta finança da cidade, com sedes de bancos como o Português do Atlântico, os artistas do Rivoli e os funcionários zelosos do Palácio dos Correios. Agora há o que restou disso: bancários a recibos verdes, funcionários municipais, reformados discutindo à esquina se a República Checa e a Checoslováquia são a mesma coisa, empregados do comércio que resta e, mais acima, prostitutas gordas e arruinadas e proxenetas de óculos de sol. Entra-se, porém, neste café recente da Baixa e há alguma coisa que faz lembrar os cenários do filme que Sofia Coppola dedicou a Marie Antoinette. Há lustres de pingentes nos tectos, bolinhos e doces que cativam o olhar, embalagens de chá, uma televisão numa moldura de talha prateada. Num nicho da parede de granito, uma imagem de Santo António está como que para facilitar o sucesso de algum encontro furtivo que o Cupido tenha favorecido antes.
As seis mesas ao fundo enchem-se para o proverbial cafezinho pós-prândio e, sobre as nossas cabeça, o anjo das setas amorosas e Psiché transitam no céu ostensivamente azul do tecto, enleando-se para desafiarem os deuses. Convidam a cabeça a refugiar-se entre as nuvens e a alhear-se do deve e haver do mundo; a esquecer os pedidos de resgate a que as pátrias terrenas se rendem para geral benefício da alta finança, olímpica Vénus cobiçosa de cada cêntimo que haja nos mortais bolsos.
De acordo com a lenda, Vénus, invejosa da beleza de Psiché, terá ordenado a Cupido, seu filho, que atirasse os seus dardos sobre a bela mortal, para que ela se enamorasse do mais feio dos homens. O deus, porém, feriu-se a si mesmo e apaixonou-se por Psiché, desafiando a vontade dos deuses. Na mesa a que me sento fico a par do final da história em letras arrebicadas e com vírgulas para ali jogadas a eito: “O casamento de Cupido e Psiché foi celebrado no Céu, na presença de todos os Deuses e com muito néctar. As musas, jovens encantadas, acompanhantes do deus Apolo e as Graças que representavam a beleza e acompanhavam Vénus, saudaram a nova Deusa. Cupido pode assim, vive eternamente ao lado do ser que mais amava. A bela história comprova que, não existe amor impossível, se formos capazes de lutar incessantemente por aquilo a que chamamos amor (sic)”. Será verdade. Mas também fica visto que nem Cupido ou Psiché conseguem melhorar o apego das pessoas pelo bom uso da língua portuguesa.