domingo, 8 de abril de 2012

O bailado dos cronópios

Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 1 de Abril


Qualquer leitor atento daquilo que escreveu o argentino Julio Cortázar sabe distinguir um cronópio de um fama. Os cronópios são espontâneos e incapazes de andar em linha recta (ou de atravessar as ruas pelas passadeiras). Distraem-se quando, por exemplo, cantam as suas canções preferidas, de tal maneira que, nessas ocasiões, frequentemente se deixam atropelar por camiões e ciclistas, e chegam a perder a conta dos dias. Também dançam, evidentemente. E os famas ficam a olhar para eles, embasbacados, mais ou menos como me sucede sempre que me detenho a reparar nos moços que aproveitam a praça de pedra alaranjada que há em volta da Casa da Música para praticar uma actividade que me parece bastante adequada ao espírito livre dos cronópios: o skate.

Passo pela Casa da Música com certa frequência, mas poucas vezes lá vou por causa dos concertos. O pequeno cronópio que resiste em mim prefere assistir às acrobacias que os skaters executam diante do anguloso edifício, observando-os e vendo como, às vezes, terminam as manobras com aparatosos “tralhos”, que é como os moços da tribo dos bonés americanos chamam aos tombos das pessoas comuns. Percebe-se perfeitamente que aquilo deve aleijar bastante, mas os rapazes, ao fim de um bocado a gemerem no chão, acabam por se erguer e voltam a executar os saltos e as cabriolas do costume. Alguns, porém, deixam-se estar a descansar encostados aos grandes painéis de vidro que os separam do afã administrativo das pessoas que trabalham no edifício, e fazem-no de um modo descaradamente ocioso, reguila, vegetando como qualquer cronópio que se preze.

Observando-os, percebe-se que os skaters mantêm um conjunto de códigos próprios. Para além dos bonés, usam agora calças justas (e já não aquelas largueironas de há dois anos atrás), camisas de quadrados e casacos com capuz. Têm as sapatilhas invariavelmente rotas, à beira da desintegração total, o que constitui um sinal de evolução técnica (desconfiem sempre que virem um jovem de tábua na mão e com ténis novos; o mais certo é nunca ter skatado nada que preste). Estes cronópios cuidadamente desmazelados cultivam também um cumprimento tribal muito peculiar, chocando as mãos duas ou três vezes, primeiro com as pontas dos dedos e, depois, com os punhos. E usam um vocabulário que, para além dos flips, dos grinds, dos ollie, dos shove it e dos board slide que identificam as manobras que executam, inclui ainda uma quantidade muito considerável do vernáculo mais chão (que não reproduzirei por excesso de zelo e por saber que, sendo esta crónica lida na capital, corria o risco de escandalizar os lisboetas menos habituados à libertinagem linguística dos tripeiros).

Gosto, pois, de observar os skaters cronópios e de ficar a vê-los a deslizar de um lado para o outro da grande praça, inclinando-se para subirem a lomba da Rua de 5 de Outubro e executando os seus saltos e piruetas como se fossem dançarinos de um bailado sem coreografia, ultramoderno e muito radical. É por isso que não tenho inveja nenhuma dos famas que vão escutar a música que se faz dentro do grande poliedro de betão. Cá fora, às vezes ao sol, os cronópios reclinam-se, espreguiçam-se e sorriem enquanto proferem larachas inconscientes. Parecem felizes e não querem saber do Orçamento de Estado para nada.