Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 15 de Abril
Diz a lenda que Diógenes de Sínope, o grego demasiado lúcido que vivia austeramente dentro de um barril, foi visto, certo dia, a pedir esmola a uma estátua. Questionado, respondeu que, sendo a estátua cega, ela não lhe daria nada e, desse modo, ele não se habituava a depender dos outros. Parece uma lição importante para a vida de qualquer indivíduo (e para o bem-estar geral das nações), mas, paradoxalmente, lembrei-me da velha anedota ateniense por causa da pedinte cega que passa as tardes encostada a uma parede da Rua de Santa Catarina, sempre perto do café Majestic. Tem uma caixa de esmolas pousada sobre os joelhos e dedilha e sopra cançonetas tristes e débeis numa melódica azul. Está ali, talvez dependa de ali estar e de ser vista por quem passa, e, todavia, parece tão invisível como a cidade aos olhos dela.
Não é a única pedinte cega de Santa Catarina. Também lá costuma estar, por exemplo, um invisual acordeonista, na esquina com a Rua Formosa, o qual interpreta cançonetas mais alegres e festivas. Mas a velha da melódica azul é cega como as estátuas de Atenas. Nunca se lhe vêem os olhos e as pálpebras dela parecem ter cicatrizado uma na outra, como há-de ter sucedido a Édipo depois de ter furado as córneas com uma adaga. No lugar dos olhos, a mulher tem uma pele fininha, glabra, e uma fenda estreita – é um rosto sem olhos. E as canções que sopra na melódica azul são melancólicas e vagas como a respiração de um doente ou uma folha seca caindo ao chão.
Fico do outro lado da rua vendo a velha pedinte com os dedos enclavinhados nas teclas brancas do seu instrumento de sopro e, enquanto ali estou, a rua parece uma cena de filme em stop motion: as pessoas passam de um lado para o outro, indiferentes, movendo-se nas várias velocidades do quotidiano. Só a velha cega está imóvel enquanto os vultos da cidade lhe passam em frente, e nem os vendedores de óculos de sol contrafeitos, com pinta de ciganos, parecem reparar que ela ali está. Noto: a cega tem o cabelo completamente branco e usa-o curto; tem pequenos brincos dourados nas orelhas e está sentada num banquinho desdobrável. Mais de perto, percebo que tem na testa duas verrugas peludas, uma de cada lado da cabeça, e que usa um saco a tiracolo. Quando pára de tocar as suas melopeias tristes, limpa o bocal da melódica, guarda o instrumento debaixo do braço e transfere as poucas moedas da caixa de esmolas para um saco de plástico amarrotado. Como não tem olhos, nunca olha para lugar nenhum. Não vê, por isso, o brilho dos relógios Rolex que refulgem na montra que está do lado da sua mão esquerda, mas talvez escute a música de discoteca que a loja de modas vomita do lado direito.
Apesar de todas as evidências, ocorre-me que a velha cega talvez não esteja ali realmente a pedir esmola; que, em vez disso, é um filósofo antigo e tresmalhado que habita a rua mais comercial da Baixa para ensinar alguma coisa a quem passa. Talvez seja a metáfora de um país. Finge soprar e dedilhar a melódica azul, mas, se calhar, é só uma armadilha, uma estátua viva que vê sem ser vista, e que finge estar sujeita à caridade de quem passa para que os transeuntes aprendam a não depender do que ela lhes pudesse dar. Hei-de, por isso, olhar para ela mais vezes - a ver se aprendo.