(Texto da intervenção produzida ontem nas Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim)
Quem aqui tenha estado no ano passado lembrar-se-á vagamente de que, um pouco inopinadamente, aqui trouxe, salvo seja, o espantoso caso da minha complicada vizinha do rés-do-chão.
Se bem se lembram, e se não se recordam eu repito, a minha vizinha era das pouquíssimas pessoas que, naquela data, me chamavam “senhor escritor”, até para me comunicar que “senhor escritor, tenho ratos em casa”. Se isso não fosse suficiente para demonstrar a excentricidade da minha vizinha, acresce que ela se entretinha ainda a enrolar crucifixos na maçaneta da porta, pelo lado de fora, para que víssemos que beneficiava de protecção superior, e a utilizar folhas de jornal como tapete (que outras vizinhas, muito velhacas, amassavam e transformavam em bolas de papel).
Ela também tinha inventado, entre outras extraordinárias coisas, algo completamente novo: uma fileira de sacos plásticos cheios de um líquido não identificado e distribuídos ao longo da soleira da porta, que imaginei que pudesse ser, de algum modo, um aparato para espantar escritores. Eu, pelo menos, sentia-me bastante espantado.
Ora acontece que a minha vizinha desapareceu sem deixar rasto. Um dia, creio que em Junho do ano passado, pôs o colchão a arejar encostado à parede, como sempre fazia, saiu de casa e não voltou mais. Está tudo exactamente como ficou naquele dia, com toda a sua insana desarrumação visível a partir da rua e os estores abertos. A janela da sala exibe uma garrafa vazia de lixívia, impressionantemente imóvel, alguns desenhos (por acaso bem curiosos) da lavra da própria e uns arranjos murchos de flores de papel reciclado. O quadro é muitíssimo melancólico.
Segundo a acta da última reunião do condomínio, a nossa vizinha encontra-se “em parte incerta”, embora haja quem garanta tê-la visto numa esplanada da Baixa e quem assegure que foi internada numa instituição de saúde mental. Desde então, dizia, ela está em parte incerta e, por isso, as autoridades judiciais não conseguem notificá-la de uma condenação qualquer por ter danificado algumas plantas do mimoso canteiro que cerca o prédio.
Em virtude do desaparecimento da quezilenta vizinha, temos beneficiado de um sossego muito substancial no edifício, sem gritos nocturnos ou suspeitas de maquiavélicas congeminações com o fito único de a prejudicar. Temos crianças que choram muito e casais que discutem e se insultam, e um homem solteiro que faz muito barulho enquanto faz amor com desconhecidas, mas, tirando isso, é como se vivêssemos num cantinho do paraíso.
Eu, porém, sinto falta da minha vizinha. A história que aqui contei há um ano surtiu um efeito simpático entre a plateia e eu cheguei a acreditar, por isso, que conseguiria espantar a vossa atenta audiência, ano após ano, apenas narrando alguma das abracadabrantes histórias da minha vizinha. Agora, porém, não tenho nada para contar e hei de confessar, para além disso, que o destrambelhamento dos outros é uma das coisas que mais animam os meus dias mortiços.
Sem a minha vizinha do rés-do-chão, e sem talento para grandes colóquios, restam-me, pois, e no essencial, duas alternativas. Posso especular sobre o que sucedeu à minha vizinha e imaginar, por exemplo, que foi abduzida por uma tribo muito colorida de extraterrestres que apreciam particularmente as nossas mulheres mais fora do comum;
que foi abduzida pelo ministro Vítor Gaspar (o que era muito bem feito para ele);
que ela, a vizinha, acordou, naquela manhã em que despareceu, e se viu transformada num insecto muito repelente;
que ficou presa para todo o sempre numa crónica doméstica do António Lobo Antunes;
que saiu de casa e encetou uma longa caminhada em direcção ao sítio onde o sol se põe;
que esta perdida no deserto de Sonora, entre grandes cactos e casas de adobe, garantindo a quem a visite que é a mãe e a madrasta de toda a poesia mexicana;
que é agora uma escritora de literatura portátil absolutamente empenhada em não escrever coisa nenhuma;
que conheceu Riobaldo Tatarana e anda cavalgando pelos sertões, liderando, qual amazona indómita, um bando de celerados cangaceiros;
que viajou no tempo e ficou presa naquele interminável dia 16 de Junho de 1904 em que Leopold Bloom andou bebendo demais pelas ruas de Dublin;
ou que, finalmente, passou a existir apenas (e atenção que isto agora é Fernando Pessoa, colheita de 1917) num espaço misterioso entre espaços desertos cujo sentido é nulo E sem ser nada a nada. E assim passa, hora a hora, todas as suas horas desde então, metafisicamente.
Podia supor isto tudo, especular, aproveitar até, quem sabe?, para escrever uma espantosa ficção de suspense a que daria o originalíssimo titulo de “O Mistério do T Zero Fantasma", o qual até podia dar uma telenovela catita ou, vá lá, um episódio dos Morangos com Açúcar. Seria, nas minhas mãos, má literatura, mas, em todo o caso, uma espécie de literatura. Mas também posso, e se calhar até devo, calar-me o mais simplesmente que puder e devolver-vos à realidade, pois sinto que já vos tomei tempo demais com o raio da minha vizinha.