segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Embrulhar o peixe*



Agora, sempre que vejo os restos mortais de algum jornal gratuito abandonado no metropolitano, ou esvoaçando, qual melancólico fantasma, pelas ruas flageladas pela brisa glaciar de Fevereiro, lembro-me do Manuel António Pina. Recordo-me, para ser mais preciso, daquilo que ele disse na entrevista que recentemente concedeu à revista Ler: “A grande dignidade do jornalismo – e da própria natureza humana – é tentar fazer o jornal o melhor possível sabendo que no dia seguinte ele vai embrulhar peixe”. “O mínimo que nos é exigível é o máximo que somos capazes de fazer”, concretizava, mesmo que o melhor possível seja inútil e não perdure no tempo; que amanhã esteja esquecido.

Na semana passada o Pina não escreveu na última página do Jornal de Notícias e, por isso, dei por mim a ter saudades daquelas que são as melhores crónicas da imprensa portuguesa. Evoquei ainda, com certa nostalgia, o tempo em que se usavam as páginas dos jornais para embrulhar o peixe, essa atávica prática pré-ASAE. Ocorreu-me, por exemplo, que me deu para esta coisa insensata de ser jornalista provavelmente por causa das extraordinárias crónicas do Carlos Pinhão na última página de A Bola (o jornal que tínhamos lá em casa quando eu era um miúdo), mas também, se calhar, por ter lido alguma reportagem ou notícia nas folhas em que os chicharros vinham ataviados; por ter sido tocado, enfim, pela romântica dignidade de uma profissão cujo labor, no dia seguinte, servia para embrulhar o peixe.

Se cheguei a ser jornalista, também o devo ao Pedro Rosa Mendes, o cronista que a administração da RTP quis silenciar. Certo dia de Setembro de 1989, eu estava quase a desistir de tentar ser estagiário do PÚBLICO. Apanhei, porém, o mesmo autocarro que o Pedro, que ia do Campo de Santana para Algés. Contei-lhe das dúvidas que me assaltavam, que era o mais novo do grupo de candidatos, que não tinha formação superior, nem experiência – nem nada. Só a vontade de ser jornalista. O Pedro incentivou-me a continuar no curso que ia seleccionar os primeiros estagiários deste jornal. Ficámos ambos na redacção do Porto. Eu ainda cá estou. Ele tornou-se num dos melhores repórteres da nossa geração: íntegro, talentoso, generoso, corajoso e honrado.

O indivíduo que ordenou o fim das crónicas do Pedro na Antena 1 declarou esta semana, no Parlamento, que instou “sistematicamente” o ex-director adjunto de informação da RDP a ajustar os conteúdos do programa descontinuado (como agora se diz). Queria, pois, censurá-lo. Ou amestrá-lo. Ou domesticá-lo. O Pedro, porém, não se calou – até porque o Ricardo Alexandre recusou alinhar no “ajustamento” e não transmitiu o recado. Daqui a vinte anos, já ninguém se lembrará, sequer, do nome da triste figura que chegou a ser director-geral da Antena 1. As reportagens e crónicas do Pedro e do Ricardo continuarão, porém, a ser lidas, escutadas e admiradas por todos aqueles que, insensatos, queiram ser dignos de embrulhar peixe em vez de se dedicarem a ser a voz servil de qualquer dono.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 14 de Fevereiro de 2012