segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Piropos a morcões*


Revi há dias a fotografia que documenta o primeiro Carnaval em que andei na rua mascarado. Estamos eu, o meu irmão e um primo nosso, alinhados num pequeno jardim e disfarçados de campinos, com barbas pintadas na cara, empunhando paus de vassoura a fazerem as vezes de pampilhos. Aparece também a nossa prima, vestida como nos outros dias e, por isso, um pouco amuada. Só agora, ao escrever este texto, reparei que a fotografia foi tirada diante de um dos blocos do Bairro das Campinas, no Porto, e a minha prima, que ali morava, é a única que não está trajada a preceito – como se ela fosse campina todo o ano e, naquele dia, tivesse de ser outra coisa qualquer.

Nos anos seguintes, se não me engano, disfarcei-me de outras coisas, mas ninguém me tirou fotografias. Fui, por exemplo, de Super Homem e vivi a inolvidável sensação de usar as cuecas por fora da roupa. Noutro Entrudo fui de guarda-redes do FC Porto, com um equipamento (quase) igual ao do Fonseca, com boné e tudo, e acabei com um galo na cabeça ao fazer uma defesa espectacular no chão de cimento do campo improvisado na área coberta do recreio (estava a chover naquele dia). Também houve um ano em que, já adolescente, me disfarcei de maricas, com uma camisa florida e umas calças curtas da minha prima. Fiz muito sucesso na Avenida dos Aliados e lembro-me de que, transformado noutra pessoa, me tornei também, naquela tarde, muito mais loquaz do que é costume: mandei piropos a alguns morcões e tudo.

Há três anos, fiz algo parecido: improvisei um traje de retirante brasileiro com uma camisola rota, umas jardineiras, uns óculos de fundo de garrafa e um chapéu de cangaceiro que uma amiga me enviou lá dos sertões. Assim ataviado, passei também a falar como os nordestinos das telenovelas e, desta forma, meti conversa com várias moças. Abordava-as e dizia-lhes: ó xenti, a sinhá moça é bonita por dimais. Não levei nenhum tabefe e consegui até que me sorrissem.

A minha mais louca experiência de Carnaval aconteceu, de resto, no Brasil, alguns dias antes da festa propriamente dita. Estava em Porto Seguro a preparar um conjunto de reportagens a propósito dos 500 anos do achamento e a cidadezinha foi invadida por uma espécie de ensaio carnavalesco. Vieram de Salvador meia dúzia de trios eléctricos e a pândega instalou-se na avenida marginal, beneficiada pela feirinha nocturna onde se podiam comprar umas bebidas insanas, Tesão de Vaca, Suor de Mulata e assim. Inspirado, lá andei a pular como um doido atrás do trio eléctrico, dando razão ao lugar-comum segundo o qual o brasileiro não é senão um português à solta, ou, o que é quase a mesma coisa, um tuga mergulhado no clima de transgressão e catarse que é, afinal, a razão de ser do Entrudo.

Dois ou três dias depois, aterrei em Salvador em plena folia, doze horas antes do voo para Lisboa. Ocorreu-me, claro, ir ver como era o famoso Carnaval da cidade. Mas não fui. Tive medo de mergulhar na condição de brasileiro tão radicalmente que, depois, não fosse já capaz de voltar para a vida como ela é.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 21 de Fevereiro de 2012