segunda-feira, 13 de junho de 2011

O que não vemos*



Há dias, enquanto fumava e fazia horas para uma consulta médica, reparei num caminho pedonal estreito que nunca tinha visto. Liga uma rua de prédios bem cuidados, na parte abastada do Porto, a uma outra via bordejada de estrepitosas vivendas. Uma vez que a consulta só estava marcada para dali a vinte minutos, entrei na ruela e percorri-a até ao outro extremo. São quarenta passos, mais ou menos, mas tive a sensação, enquanto caminhava, de ter sido teletransportado para uma outra realidade.

As casas da viela são pobres, mas apenas iguais a tantas outras que profusamente existem pela cidade. Têm as paredes desbotadas e os telhados remendados com uma espécie de tela impermeável prateada. Ainda vi, de relance, uma velhota mancando um pouco enquanto percorria um carreiro lateral e escavacado a caminho de casa. Num dos muros, alguém tinha pintado, há muito tempo, a expressão “vende-se” com letras um pouco toscas, as quais se foram cobrindo da mesma patine que há nas pedras e agora já quase não se vêem – como as pessoas que ali moram.

Se é um pouco extraordinário que aquelas casas ali continuem, encravadas e cercadas como a aldeia do Astérix – provavelmente à espera de que os moradores acabem por morrer e o terreno fique livre para mais um ou dois palacetes –, não foi isso o que mais me impressionou. Surpreendeu-me, isso sim, o facto de nunca ter reparado naquele recanto da cidade, apesar de passar por ali com alguma frequência. E fiquei a pensar se foi a cidade que se organizou de modo a que aquelas casas passem despercebidas, escondendo-as, ou se não as vi porque não quis ver; se terei sido simplesmente adestrado para olhar para aquela parte do Porto como um sítio onde não é previsível deparar com histórias e vidas como as das pessoas que moram nas casas pobres do bairro rico (sobrevivendo, provavelmente, com reformas minúsculas entre vizinhos que se locomovem em automóveis escandalosos e um pouco exibicionistas).

A atenção que prestamos às coisas parece, pois, obedecer a mecanismos complexos. Em poucos dias da semana passada, reparei também mais detidamente no rapaz que canta e toca viola encostado a uma parede da Rua de Cedofeita, com a voz quase igual à do Kurt Cobain e um vago olhar esgazeado. Fui ainda ver os velhos vendedores de repolhos e frutas do Mercado do Bom Sucesso, que hoje(*) ali trabalharão pela última vez para que, depois, o (suposto) progresso transforme a velha praça em mais um centro comercial arrebicado entre centros comerciais arrebicados. Em vez de serem estimulados a qualificar o serviço que prestam, tornando-o mais moderno e atractivo –¬ como sucedeu, por exemplo, no Mercat St. Josep, a famosa Boqueria de Barcelona –, os comerciantes do Bom Sucesso serão extintos e definitivamente relegados à invisibilidade. E a culpa também é minha. Nunca, de todas as vezes que por ali passei, me dei ao trabalho de olhar para eles. O mercado do meu bairro fecha hoje e eu nem sequer lá fui comprar morangos.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 31 de Maio de 2011