sábado, 11 de junho de 2011
O mal de Estrunfina
Um investigador da Universidade de Ciências Políticas de Paris, Antoine Buéno, publicou recentemente um livro no qual acusa a aldeia dos estrunfes, aqueles bonequinhos azuis da minha infância, de veicularem valores racistas e anti-semitas. Da análise resulta ainda a ideia de que o funcionamento político da comunidade liderada por um ancião de barba branca, com barrete e calças sintomaticamente vermelhos, segue um modelo ditatorial e colectivista, de cunho estalinista. Segundo li, Le Petit Livre Bleu: Analyse critique et politique de la société des Schtroumpfes sublinha que o estrunfes vivem num mundo onde a iniciativa privada não é valorizada, as refeições são tomadas em conjunto numa sala comunal e os habitantes raramente saem da aldeia (cujas casas são cogumelos).
O estudo recorda também a história, evidentemente racista, dos estrunfes pretos, que ficam incapazes de falar na sequência da doença que os atinge. Buéno descobriu ainda algumas tonalidades nazis na organização social dos bonecos e até um estrunfe parecido com Leon Trotsky, a ovelha negra da União Soviética estalinista.
Enquanto antigo consumidor das histórias criadas pelo belga Peyo e ex-proprietário de uma pequena comunidade daqueles anões de barrete branco, confesso que as conclusões de Buéno não causaram em mim aquele choque que, pelos vistos, motivou o vivo protesto de vários clubes de fãs dos estrunfes. Se, por outro lado, o criador dos gnomos azuis teve, alguma vez, a intenção de contaminar o mundo com ideias perversas, ocultando a perfídia atrás de bonequitos azuis de ar inocente e palerma, o objectivo há-de ter sido completamente frustrado. Não odeio judeus (desconfio, aliás, que sou um bom pedaço judeu), desprezo o conceito de raça e não me parece que o totalitarismo estalinista beneficie hoje de um prestígio internacional que deva provocar grandes sobressaltos ou preocupações entre os adeptos dos benfazejos mercados. Se bem me recordo, o estrunfes deram corpo, aliás, a uma das primeiras campanhas de marketing capitalista à escala internacional. Vendiam-se livros para colorir e pequenos bonecos de borracha, os quais, no Portugal da década de 1970, só tinham rival nos congéneres resultantes dos desenhos animados da Heidi (a abelha Maia nunca conseguiu a mesma eficácia no capítulo do merchandising).
Do pouco que recordo dos estrunfes, há apenas um aspecto que considero inquietante e passível de ter provocado graves malformações durante o desenvolvimento psicossocial dos jovens infantes que, então, éramos. Refiro-me concretamente ao facto de a aldeia de cogumelos ser habitada por uma única estrunfina. Tinha sensuais pestanas longas e reviradas, o cabelo louro e usava sapatos de salto alto e um vestidinho curto de alças. Penso nisto e não sei ainda até que ponto esse primeiro modelo feminino poderá ter influenciado perversamente o comportamento sentimental de toda uma geração de varões europeus, ou se não teremos, depois, ficado incapazes de lidar com o espanto maravilhoso da diversidade.
Ninguém estuda isto?