(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 17 de Agosto de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Tiziano Terzani, repórter e escritor italiano, decidiu obedecer à profecia de uma espécie de bruxo de Hong Kong e passou o ano de 1993 sem entrar num avião. Em Disse-me um adivinho, o livro em que conta aquele que, diz, foi um dos mais extraordinários anos da sua vida, Terzani evoca as vantagens da lentidão por oposição à velocidade dos aviões, a descoberta de uma outra compreensão do mundo.
Antigo correspondente do Der Spiegel na Ásia, o italiano compara os aeroportos, “todos idênticos”, a “bolhas de ar condicionado”. São, escreveu, “ilhas de relativa perfeição até nos países em ruínas onde se encontram”. Já as estações de comboios são “autênticas”, “espelhos das cidades em cujo coração estão implantadas”.
Tenho viajado incomparavelmente menos do que viajou Tiziano Terzani e, apesar das afinidades profissionais que nos aproximam, jogamos, na verdade, em campeonatos completamente diferentes. Ele disputava o Campeonato do Mundo e a Liga dos Campeões do jornalismo, eu arrasto-me nos campos de terra de uma divisão amadora dedicada aos pernetas. Ainda assim, e apesar de ser mais novo, fui ainda a tempo de conhecer, em África, aeroportos dificilmente comparáveis com os seus congéneres europeus.
Em 2005, por exemplo, aterrei no velho aeroporto da cidade da Praia, a capital de Cabo Verde. Tratava-se, então, de uma pequena construção à qual foram sendo acrescentados pitorescos anexos, incaracterísticos como marquises dos subúrbios. Seriam, creio, quatro da manhã quando cheguei e, apesar disso, o aeroporto estava cheio de gente que esperava familiares, carregava malas e tomava cerveja sentada dos muros, num fervilhar incrível.
Nesse mesmo ano, e outra vez em 2008, conheci ainda o velho aeroporto de S. Pedro, no Mindelo, com um edifício que fazia lembrar Pedras Rubras de há trinta anos atrás. A cidade cabo-verdiana inaugurou, entretanto, uma nova gare, mas, então, era uma sensação única aterrar ali num ATR 400 e, depois, descer os três degraus que nos separavam da pista e caminhar ao sol até à sala onde as malas eram despejadas por um buraco na parede.
Em Luanda, em 2007, a ruína aparente das velhas construções da capital angolana contaminava também, de algum modo, o aeroporto. Quando se chegava havia um homem de bata branca, com uma enorme seringa na mão, preparado para vacinar quem se tivesse esquecido de prevenir a febre-amarela. Avisavam-nos, depois, que não devíamos sair para a rua sem que alguém conhecido viesse buscar-nos ao perímetro vedado da zona de desembarque. E, no regresso, os procedimentos alfandegários incluíam um interrogatório policial destinado a apurar se estávamos a abandonar o país na posse de algum exemplar da moeda local. A sala de embarque era um sítio abafado e habitado por uma implacável nuvem de moscas.
Bem vistas as coisas, talvez seja um viajante refractário, mas com sorte. Conheci, se calhar, os últimos aeroportos do mundo que eram como gares ferroviárias, ainda autênticos e cheios de vida. Únicos – como as memórias.