segunda-feira, 5 de abril de 2010

Literatura e bares



(*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 2 de Março de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)

Quinze bares históricos de Buenos Aires, na Argentina, oferecem aos clientes, desde a semana passada (*), a possibilidade de lerem as obras completas de Jorge Luis Borges. A iniciativa chama-se Yo leo en el bar e, de acordo com o ministro da cultura da região portenha, Hernán Lombardi, destina-se a cumprir a tarefa de difundir o hábito da leitura entre os que a não praticam.

Parece uma coisa encantadora, apesar de pouco convencional: um sujeito entra no bar para beber um mate, ou uma aguardente velha, e aparece-lhe O Aleph, agarra-o pelos colarinhos e transforma-o num leitor. Pode imaginar-se que o suposto cliente ficará horas lendo e relendo Ficções e que voltará no dia seguinte para retomar um livro que tenha deixado a meio na noite anterior. É, sim, uma ideia bonita e benévola, mesmo que, sob influência borgiana, o novo leitor acabe por mergulhar numa espiral de leitura obsessiva e passe a vida como que encerrado numa biblioteca infinita sem jamais sair do mesmo livro do escritor argentino.

Na apresentação da simpática iniciativa, Lombardi declarou que os bares são lugares tradicionais de leitura. Poderia invocar-se também o ameno e histórico convívio dos escritores com essas casas, plasmado, por exemplo, no enredo de Conversas n’A Catedral, de Mário Vargas Llosa, ou no título de um livro do brasileiro Paulinho Assunção, A Sagrada Blasfémia dos Bares. Na verdade, porém, nem sempre a literatura é acolhida tão amistosamente nos lugares onde se servem bebidas alcoólicas. Bastaria, para percebê-lo, ter estado, na semana passada, na apresentação de O Terceiro Reich, o mais recente romance do chileno Roberto Bolaño, lançado num bar de praia da Póvoa de Varzim.

À hora marcada para o início da cerimónia, o bar estava ainda tomado por uma multidão de jovens suburbanos poveiros assistindo a intervenções de karaoke. Os escritores, editores e jornalistas convidados para participarem nas Correntes d’Escritas foram chegando e misturando-se com a fauna local, agarrando também eles em cervejas e outros líquidos, mas a juventude poveira parecia pouco disponível para abandonar o palco e deixá-lo entregue à literatura (podem encontrar-se no P2 de ontem e no blogue Irmão Lúcia citações das pouco amistosas frases escutadas aos espadaúdos mancebos). Instantes antes de Francisco José Viegas, o editor do livro, subir ao estrado, ainda se escutava, aliás, uma imitação pouco feliz da canção Coisinha Sexy, de Ruth Marlene.

Não me pareceu mal, apesar de tudo, o convívio de Ruth Marlene com Roberto Bolaño. Quando o DJ Pedro Vieira, convidado pela editora Quetzal para animar a noite, teve que interromper a actuação mal se escutou a frase “não podemos ficar agora a noite toda a ouvir a vossa música”, os praticantes do karaoke puderam retomar o controlo territorial do palco. Dois mocetões e uma rapariga anafada cantaram e dançaram com coreografias estudadas, mas, nos lugares da frente, os escritores, jornalistas e editores já não arredaram pé. Tinha irrompido ali mesmo uma forma de literatura, algo surreal e grotesca, e empenhámo-nos, talvez por isso, a demonstrar que cromos também dançam.