terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Imaginar demais

O título na primeira página do jornal, em letras brancas sobre um fundo rubro, prometia: "Casal de reformados usa cruzeiros de luxo para traficar cocaína". Imaginei os dois velhotes de camisas havainas e óculos de sol, com chapéus de palha, vendendo amistosas doses de droga ao balcão das esplanadas do navio, os outros velhos fazendo fila para comprar o pó que depois cheiravam sem grandes cautelas.

A vida, eles sabem, já não vai durar muito e o melhor a fazer é aproveitar o cruzeiro até à última gota. As piscinas do cruzeiro enchiam-se de corpos enrugados e festivos que dançavam ao som de música tecno e se roçavam sem decoro nenhum. Pela noite, após uma sesta antes do jantar, o ambiente orgíaco repetia-se no salão de baile, de onde alguns velhotes saíam para copular nos corredores dos camarotes, nas piscinas, na casa das máquinas, experimentando uma liberdade definitiva e, se calhar, final. Talvez alguns morressem a bordo, vítimas de excesso de felicidade - e, por isso, os cadáveres eram desembarcados com embaraço, devido aos sorrisos libidinosos que os velhos mortos levavam nos lábios.

Não devia, por tudo isto, ter lido a notícia nas páginas interiores, a qual só serviu para demonstrar o quanto havia imaginado demais. Os dois velhos detidos, septuagenários mesquinhos e demasiado ambiciosos, limitaram-se, afinal, a receptar numa paragem das Caraíbas cocaína no valor de 63 milhões de euros, a qual se destinava a ser traficada na Europa, após o desembarque. Foram detidos em Lisboa. Agora, na catacumba onde vão esperar pelos trâmites judiciais, talvez lamentem não ter cheirado a coca toda em alto mar, ao sol, bebendo daiquiris na borda da piscina.