terça-feira, 20 de março de 2012
Os contabilistas do amor na Inculta TV
Minha cidade:
Já não sei há quantos anos gosto de ti, nem quando ganhei consciência deste amor, se é realmente amor este gostar de caminhar pelas tuas ruas, entre a ruína das tuas casas, e o prazer de passar o gomo dos dedos pela pele fria dos teus granitos, de olhar o rosto da melancólica sombra daquilo que podias ter sido se não te tivessem tratado com tamanha indiferença e tanta falta de atenção. Mas acho que gosto de ti mesmo assim, com todos os teus defeitos, as cãs do teu cabelo e as rugas de expressão que testemunham a vida cheia que tens tido, as festas e as alegrias, o teu corpo em azul e branco e perfumado de manjericos, mas também o interesse regular desses contabilistas do amor que só queriam o teu corpo, usar o teu corpo e passeá-lo pelos salões de festas, exibir-te como teus proprietários.
Envelheceste, Porto. Não és, nunca foste, uma cidade de amor fácil, nem oferecido. Nem sequer me olhas quando eu passo por ti e me comovo com as tuas curvas, com a sombra das tuas esquinas ou o fulgor da luz nas tuas janelas. Ignoras-me. Mas tens lá os teus humores, as tuas manias, e um orgulho tolo que te faz, às vezes, entregar-te ao primeiro cretino que te aparece à porta e te sussurra coisas parvas com falinhas mansas. Eu gosto de ti na mesma. Namoro-te às escondidas e nem precisas de saber que estou diante da tua janela à espera de te ver despertar sozinha, independente e nobre. Os outros podem ter ido embora, desistido de ti, podem ter-te trocado por outras urbes, pelos encantos cosmopolitas de certas europeias capitais, de tailleur e saltos altos, mas eu continuo aqui, minha tonta, à espera de te ver espreguiçar e pôr uma magnólia nos cabelos.
Quando, às vezes, me perguntavam porque gosto de ti, porque continuo a gostar de ti apesar de tudo e das nódoas negras do teu orgulho ferido, eu dizia-lhes que não há outra cidade como tu. Que há Paris e Londres, que há o Rio de Janeiro, sim, e Nova Iorque, e Praga, e Barcelona, e Salvador da Bahia e Veneza, tudo muito certo, são belas cidade e porque não?, mas que não há outra cidade como tu, espraiando-se sobre o rio, encavalitando-se nas suas margens, jogando às escondidas com os seus segredos, rindo-se quando há sol e recolhendo-se quando a chuva vem. Vista de um certo ângulo, a partir de Gaia, dizia-lhes, és uma das mais impressionantes paisagens urbanas do mundo. Creio que, por dentro, eles sorriam. Precisaram que uma companhia aérea com viagens de baixo custo para cá trouxesse os turistas que te haviam de cobiçar, precisavam que outros te namorassem para perceberem exactamente o que eu lhes dizia, que nenhuma das tuas nódoas negras, nem os macaquinhos da tua cabeça, são capazes de esconder aquilo que realmente és: incomparável flor do Douro, inculta e bela.
Gosto de ti, minha parola.