segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
Peripatético trágico
Dormi três noites seguidas num sítio muito alto frente ao mar, no nono andar de uma torre-hotel diante do qual o mar se desfazia, a noite toda, num rugido violento e feroz. Sei perfeitamente que devia ter estado mais tempo a olhar o mar a partir da varanda, vendo-o encrespar-se em espuma e raiva antes de vir colidir na praia, mas tinha sono, muito sono, mesmo quando desfiz os ligamentos de um tornozelo a dançar como um louco no bar do hotel e o Bruno Vieira do Amaral me atribuiu o Prémio Ismailov com certa injustiça, pois, ainda combalido, regressei à pista de dança e não pedi substituição como sempre faz o extremo russo do Sporting. Continuei a dançar e, depois, quando acordei com dores a meio da noite, pensei que tinha sido louco e também estúpido, que devia ter parado e feito como os escritores que ficam sentados como esfinges inteligentes e graves, e poupado o tornozelo e o ego ao massacre de mais uma dança, e mais outra. Porém, como numa canção de Amy Lee, continuei a dançar apesar da dor e apesar de tudo, tão amalucado como, pelos vistos, pareço, pois as Correntes d'Escritas são só três dias (como o Carnaval de antigamente) e é preciso aproveitar enquanto dura. Quando acordei a meio da noite, com o tornozelo a latejar, incómodo, ouvi outra vez o ronco do mar. Fiquei a ouvi-lo e a pensar no Rubem Fonseca, que também é peripatético e não consegue ficar quieto. Fala enquanto caminha, como Aristóteles e os seus seguidores. Eu danço e não ensino nada, qual peripatético inútil e trágico. O mar roncava lá em baixo, nove andares abaixo, falando a sua voz grossa enquanto ia e vinha, e eu, lá em cima, tinha a certeza de que passaria o dia seguinte imobilizado como uma árvore ou uma pedra. Mas escutava o rugido do mar. Por ele fui embalado. Dormi.