segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Sócrates bom*



Tonto como sou, ando há várias semanas a perder tempo com o infeliz assunto da irresponsabilidade contumaz dos dirigentes que temos. Hoje, porém, voltou a ocorrer-me que esta teimosia é reveladora de uma enorme insensatez; que, apesar do esforço de reflexão, análise e crítica realizado por várias gerações de pessoas muito melhores do que eu, não consta que o país alguma vez tenha despendido algum esforço para tentar ser melhor do que é. Quando muito, carrega na maquilhagem, faz uma plástica às mamas e vai abanar o traseiro para os salões, na esperança de engatar algum velho rico que o sustente.

Muitíssimo cansado, pois, de todos os Sócrates maus que têm governado esta choldra – desde aqueles que realmente se chamam Sócrates aos que prosaicamente se chamam Barroso ou Coelho, passando pelos simples Silva que fazem gala em não saber hoje aquilo que fingiam conhecer profundamente há 20 anos –, apetece-me hoje homenagear aqueles que foram os Sócrates bons. Quero recordar, desde logo, o filósofo ateniense que, segundo a lenda, ensinava aqueles que o escutavam a usar a própria cabeça – e que, por isso, se tornou incómodo ao ponto de ter sido condenado à morte pelos responsáveis políticos da época em que viveu –, mas também o ex-futebolista brasileiro falecido este fim-de-semana.

Tenho, felizmente, idade suficiente para ter visto jogar Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira naquele Mundial de 1982 que a Itália ganhou sem saber ler nem escrever. Foi há muito tempo e, por isso, vi tudo a preto-e-branco na pequena televisão Grundig que tínhamos em cima do frigorífico. Belmiro, o meu primo carioca que, então, tinha vindo conhecer a terra dos avós, preferia o Zico e o Falcão e trazia uma camisola oficial do escrete (agora que penso nisso, acho que foi por causa da camisola amarela do Belmiro que eu fiquei a saber qual era a cor do equipamento do Brasil; por outro lado o meu primo jogava tão mal à bola que conseguiu destruir o bondoso preconceito segundo o qual todos os brasileiros eram futebolistas predestinados). Eu nunca mais me esqueci do Sócrates, um magricela barbudo que se movimentava no campo como se vivesse numa dimensão paralela do tempo: os outros afadigavam-se e corriam, mas Sócrates parecia ter sempre tempo para tudo, como se cada instante durasse, para ele, nove ou dez segundos. Esticava o tempo de uma forma quase insuportável e, depois, com uma elegância etérea, fazia um passe exacto e perfeito, de puro milagre, que inventava um espaço que não parecia existir antes.

As muitas biografias que ontem o recordavam coincidiam em sublinhar que Sócrates era culto e inteligente, cívica e politicamente empenhado, e que jogava sempre de cabeça erguida. Era um criativo cuja capacidade de invenção residia na capacidade de simplificar as coisas. “Dava poucos toques na bola, não desperdiçava nenhum”, escreveu o Filipe Escobar de Lima na página 23 do PÚBLICO. Dito assim, parece o protótipo do governante ideal, seja de um país ou de uma casa de família. Mas os políticos nunca aprendem nada com o futebol.


*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 6 de Dezembro de 2011