segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Triste figura*



Que coisa absolutamente moderna é o D. Quixote, a obra que Miguel de Cervantes publicou há coisa de quatrocentos anos. Já lá estava quase tudo o que veio a ser a ficção nos séculos posteriores, nisto se incluindo o quinhão de comédia e tragédia que sempre devem dar corpo a um romance, mas também os mecanismos do suspense entre capítulos, o jogo da metaliteratura, o enovelamento romanesco e a tentação da sequela (a primeira parte do livro, tal como hoje o conhecemos, saiu no início de 1605 e a segunda, mais fraquinha, só veio a ser editada dez anos depois, incluindo respostas às críticas e reflexões sobre a difícil arte de narrar). O Quixote é tão bom que me parece agora muito parvo que me tenha sido necessário fazer quarenta anos para finalmente ganhar juízo e vergonha na cara, tendo, pois, passado a lê-lo. Triste figura fiz eu enquanto perdia tanto tempo a ler coisas sem interesse quase nenhum, só porque eram a última sensação literária, quando teria gasto esse tempo com muito maior proveito entretendo-me com essa velharia maravilhosa que são as aventuras do insensato cavaleiro e do seu escudeiro, tão fiel como desbocado, tão humilde quanto desmedidamente ambicioso.

Não sei de qual dos dois gosto mais, se de Quixote ou de Sancho Pança, ou se prefiro o destrambelhamento da dupla às histórias que com eles se cruzam, como a do curioso impertinente, a quem a extrema desconfiança abre caminho à maior das traições, ou a do soldado desterrado que regressa da moirama na companhia da mais bela das argelinas; se me convence mais o rigor formal dos episódios que o têm ou o desbragamento daquela passagem em que Sancho Pança se borra de medo. Mas é tudo muito melhor do que a versão em desenhos animados dos anos 1980, na qual o fidalgo era ruivo e os episódios sempre começavam com o próprio Cervantes escrevendo à pena a frase inicial do livro: “En un lugar de la Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme...”.

Tal como fui capaz de entendê-lo, o humilde fidalgo Alonso Quijano é, quando transmutado em D. Quixote, um homem muitíssimo livre e apenas governado pela louca máquina da imaginação. Se confunde moinhos de vento com gigantes, uma bacia de barbeiro com o elmo de Mambrino, estalagens com castelos ou rebanhos de ovelhas com exércitos, fá-lo não tanto por ter o espírito perturbado pela insânia, mas sobretudo por ser capaz de ver aquilo que mais convém ao fito de viver aventuras que possam medir-se com aquelas que figuram nos romances de cavalaria. Quando se queixa de ter sido enfeitiçado ao ponto de não ver os logros em que vai caindo, Quixote é apenas, e talvez o saiba, um doente de literatura. Se calhar, foi o primeiro de todos os que sofreram dessa maleita em que os livros nos transformam em indivíduos capazes de desejarem vidas diferentes, e melhores, do que daquelas que fomos vivendo. Ao contrário da maioria de nós, o fidalgo da Mancha saiu de casa e arriscou experimentar o sonho, indiferente à triste figura que estivesse fazendo.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 9 de Agosto de 2011