A minha varanda e o ar morno que aqui chegava hoje fez-me voltar à varanda do Hotel Porto Grande, no Mindelo, e a esse final de Julho de 2005, quando ali me instalei, numa quente, deliciosa tarde de névoa. Da minha varanda, porém, não se vê a Praça Amílcar Cabral, nem as pessoas passando de um lado para o outro entre as acácias. Da minha varanda, na verdade, não se vê porra nenhuma, apenas as varandas de um prédio igual ao meu e duas ou três árvores entre as quais não circula a vida do Mindelo. Em Agosto, na verdade, não passa por aqui vida nenhuma, como se a cidade tivesse adormecido.
Sem nada que me convocasse à rua, tive, pois, tempo para reler o Território Comanche, esse admirável relato do quotidiano dos repórteres de guerra na antiga Jugoslávia, a sua evocação enquanto dois jornalistas da TVE esperam que os croatas em fuga façam explodir uma ponte, para poderem filmá-la no momento em que vai pelos ares. Creio, por exemplo, que percebi quem inspirou a personagem de Olvido, a mulher de O Pintor de Batalhas, e, eventualmente, mais uma ou duas coisas comuns aos dois livros, comuns è realidade e à ficção, quero dizer, mas não obtive nenhuma grande revelação relativamente ao segundo motivo da revisitação. Ou seja: não sei porquê, nem em que momento, fracassei ou comecei a fracassar.
Território Comanche trata de jornalistas como, no início, (quase) todos os jornalistas gostavam de ser: aventureiros e um pouco heróicos, arriscando a pele para contar como é uma guerra e a sua imensa insensatez, os seus horrores. Pérez-Reverte conta o trágico e o épico, revela as grandezas, mas não esconde nenhum dos perigos que aquela vida encerra: uma bala perdida, um morteiro lançado ao calhas, uma mina, uma avenida errada à hora errada.
Eu também, em algum momento, quis ser um jornalista daqueles. Hoje sei que nunca o serei. E nem sei o que serei. Tenho, porém, certeza de que nunca terei coragem para aquilo, para estar onde esteve Reverte ou o meu amigo Pedro Rosa Mendes. Talvez, inconscientemente, me tenha lembrado de Território Comanche quando, em 2001, recebi um telefonema perguntando se queria ir para o Iraque — para a guerra do Iraque, quero dizer. Lembro-me de que estava na sala, creio que a jantar, e que olhei para os meus filhos sentados à mesa. Olhei para eles e respondi que não — e talvez tenha sido aí que comecei a desistir. O meu Território Comanche é aqui, um dia atrás do outro, uma conta após outra conta. E não tem corrido mal: estamos todos vivos.