quinta-feira, 11 de agosto de 2011
O confessionário número 10
Ninguém, creio, peca tanto como os católicos, o que, bem vistas as coisas, encerra uma espécie de paradoxo. Os católicos, tal como eu consigo entendê-los, sujeitam-se livre e espontaneamente a um conjunto de preceitos ao abrigo dos quais se deviam abster do pecado ou, ao menos, se deviam comprometer a evitá-lo tanto quanto possam. Entra-se, porém, num sítio como a catedral de Santiago de Compostela e lá estão os beatos esvaziando os seus sacos de pecados ao ouvido de um dos confessores de serviço, como se tivessem, até aí, pecado como se não houvesse amanhã.
O que os confessionários de Santiago têm de mais extraordinário é que, para além de serem dez, alinhados ao longo de ambas as paredes da nave principal, estão ainda dotado de um sistema luminoso que faz lembrar a sinalização dos estacionamentos vagos nos centros comerciais mais modernos: têm um número electrónico e uma luzinha vermelha indicando se estão ou não de serviço — como os táxis, conforme bem observou o Afonso.
De um modo geral, os confessionários estão sempre ocupados com a farta clientela que se desloca ao santuário, os curas inclinando-se para ouvirem melhor os pecados por entre o clamor da turba dos turistas. Na cabina do confessionário número dez, porém, o confessor de serviço parece que nunca tem clientes, como um táxi velho ou um peepshow muito decadente. Está sempre com a cabeça baixa, o frade, como se lesse ou meditasse, mas ninguém o procura, apesar do traje pesado e da cruz de Santiago bordada ao peito. Tem, talvez, um ar demasiado severo e intolerante e é possível que tenha ganho fama de aplicar um receituário de penitências de alto lá com elas, capazes, pois, de fazer inveja ao contrato-programa da troika/FMI e de castigar os pecados dos cristãos com o rigor que eles deviam merecer.
O frade da cabina número 10 também não gosta de fotografias. Assim que um turista aponta a lente, ele, como se estivesse dotado de uma percepção extrasensorial, levanta a cabeça do breviário e trata de fechar as janelinhas do confessionário, mirando-nos obliquamente como se mil pragas houvessem de tombar sobre as nossas frontes. Soube, naquele instante, que estou perpetuamente amaldiçoado. Fugi, pois, dali antes de que as estátuas dos santos principiassem a verter lágrimas de sangue e as paredes da catedral ruíssem como nos filmes. Eu gosto bastante de Santiago e, apesar de tudo, acho que a catedral, naquele sítio, não fica lá mal de todo.