segunda-feira, 20 de junho de 2011
Haja quem cante*
Na semana passada, uma professora mexicana da pré-primária, Martha Rivera Alanis, foi condecorada por bravura pelo governador de Nuevo Leon. Segundo as notícias, ocorreu, no dia 27 de Maio, um tiroteio à porta da escola, mas Martha foi capaz de manter a tranquilidade entre os alunos: pediu-lhes que se deitassem no chão e que cantassem uma musiquinha infantil alusiva a uma chuva de doces. Enquanto, no exterior, os bandos de narcotraficantes de Monterrey produziam saraivadas de chumbo grosso e cinco vítimas mortais, na sala de aulas as crianças imaginavam que as gotas de chuva pudessem ser feitas de chocolate. “A minha única intenção foi que as crianças ignorassem um pouco o barulho das balas e, então, ocorreu-me cantar aquela canção”, explicou a educadora.
Para além de ter sido capaz de manter as crianças alheadas da brutalidade do mundo real, a professora teve ainda a presença de espírito para gravar tudo com a câmara do telemóvel. O vídeo produzido acabou naturalmente por ser divulgado no Youtube, transformando-se num sucesso viral. Martha é, pois, a heroína do momento e a sua história tem sido contada em jornais de todo o mundo - e também na edição online do PÚBLICO, onde foi lida por quase onze mil pessoas em 24 horas.
Percebe-se perfeitamente o interesse suscitado pelo caso de Martha Rivera Alanis (e dos seus pequenos pupilos). Estamos, nos tempos que correm, particularmente carecidos de boas notícias e de heróis de verdade, de carne e osso e que não tenham sido produto de alguma bravata eleitoral que os próximos dias se encarregarão de desmascarar. Sabemos que, de uma maneira ou de outra, os anos que temos por diante vão doer em várias partes do corpo. Agora que a campanha eleitoral (enfim) terminou, vamos muito provavelmente ser acordados à bruta e convocados, os do costume, a pagar o desgoverno de uns poucos.
A história de Martha, sendo encantadora, constitui também, e por isso, um pequeno e delicado raio de esperança para enfrentar as dificuldades que temos pela frente. Quando os preços subirem, os impostos aumentarem, o trabalho for uma miragem e os despedimentos tiverem sido facilitados; quando, enfim, a austeridade bater às portas todas e o futuro se assemelhar (ainda mais) a uma coisa escura e brumosa, vamos, então, precisar, quase todos, de um abrigo seguro como aquela escola de Monterrey. Dias virão, e nem é preciso ser adivinho para sabê-lo, em que teremos vontade de fechar os olhos e de ficar deitados no chão, encolhidos em posição fetal e à espera de que a borrasca abrande. Desejaremos, nessa altura, que uma voz carinhosa nos convença a cantar melodias doces e fantasiosas, que nos hipnotizem e sosseguem um pouco. Vamos, sim, precisar de alguém que, como Martha, nos embale e dê colo, que cante connosco e nos faça crer que, lá fora, as coisas não são tão más como parecem; que há pássaros cantando, cornucópias de mel, obras públicas, vida para além da dívida e delicadas gotas de chocolate jorrando de um céu infinitamente azul.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 7 de Junho de 2011