segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra...


O meu avô Ricardo não sabia escrever mais do que as letras do próprio nome. Desenhava-as muito devagarinho para não se enganar. Mas recordo-o, às vezes, a afiar lápis com o gume de uma faca. Ou debruçado muito tempo sobre as páginas de A Bola, como se lesse o jornal todo. Alguém, um dia, me explicou que ele conseguia, com esforço, juntar as letras maiores dos títulos e, desse modo, ficava com uma ideia suficiente da actualidade desportiva. Ele era do Belenenses e do Boavista e detestava o Porto de um modo visceral. Creio que deve ter-me perdoado a traição portista, já que nunca deixou de me levar nas viagens que ele e a minha avó faziam. Íamos sempre de comboio (pouca-terra, pouca-terra...) e o meu avô, que não sabia escrever, sabia de cor e salteado as estações e apeadeiros do Porto até Castelo de Vide, a terra deles.

As viagens dos meus avós eram uma coisa demorada. Saíamos de casa de manhã muito cedo para ir apanhar o comboio a Campanhã e só chegávamos a Castelo de Vide quando a noite já ia alta. Se parávamos na Pampilhosa, o meu avô sabia quantas paragens faltavam até ao Entroncamento, onde tínhamos que ficar um ror tempo à espera da composição que havia de vir de Lisboa e, depois, seguia pela Linha da Beira Baixa. Chegados à Torre das Vargens, tínhamos, às vezes, que voltar a trocar de comboio, com as malas às costas.

Até hoje me lembro, por causa dessas viagens, de nomes de sítios como Alfarelos, Caxarias e Vale do Peso, e de como a minha avó se punha aflita de cada vez que o meu avô aproveitava as paragens mais demoradas para sair do comboio e esticar as pernas. Recordo-me também de um cheiro muito particular que havia nas estações, como se do ferro dos carris, da madeira das travessas e das pedrinhas sobre as quais a linha assentava emanasse um odor que me habituei a identificar como o cheiro a comboio. Voltei a senti-lo no Verão passado, no apeadeiro do Vesúvio, quando fui mostrar o Douro aos meus filhos e acabei por me meter numa estrada sem saída: uma estrada retorcida entre vinhedos, pela qual entrei sem cuidar de que, no final, seria acometido pela nostalgia dos comboios e pela recordação das viagens antigas.

Voltei a lembrar-me de tudo isto por causa das notícias que, há uma semana, davam conta do encerramento do Ramal de Cáceres, pelo qual fazia, com os meus avós, o percurso que ia da Torre das Vargens à estação de Castelo de Vide (caiada de branco, com canteiros de flores, azulejos e placas assinalando prémios no concurso das estações floridas). Numa dessas viagens, o comboio ficou debaixo de uma nuvem de gafanhotos. Recordo o barulho dos animais chocando contra as janelas e o ruído estaladiço que faziam as rodas do comboio quando esmagavam os gafanhotos que estavam pousados na linha. Disseram-me, anos mais tarde, que não há tempestades de gafanhotos em Portugal e que a minha memória há-de corresponder a um sonho qualquer. Não importa. Não faltará muito para que também os comboios (pouca-terra...) e os apeadeiros se transformem em belas fantasias distantes.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 8 de Fevereiro de 2011