segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
Nha Nácia Gomi
Foto de Omar Camilo, retirada do blog Café Margoso
“Lusofonia” é uma palavra boa para falar de boca cheia. Fica bem nos discursos, serve para promover excursões diplomáticas e até para manter ocupados os cavalheiros do marketing cultural. Depois, quando se vai a ver, a lusofonia é só uma coisa oca com um embrulho bonito – como um ovo de Páscoa ao qual não falta, sequer, a evocação doce do chocolate de São Tomé e do Brasil. Só isto explica que Nha Nácia Gomi tenha morrido e quase não tenha havido notícia disso nos meios de comunicação social portugueses.
Nha Nácia Gomi morreu no passado dia 4, na Praia, em Cabo Verde, aos 86 anos de idade. Era analfabeta, mas também considerada uma autêntica biblioteca de sabedoria popular. Improvisava canções, contava histórias, recitava poesia, declinava tiradas filosóficas e ensinava a História das ilhas. Nessa condição, representou o país, por exemplo, nas expos de Lisboa e de Sevilha.
Mesmo que vossa excelência que agora me lê não a conheça, Nha Nácia Gomi (ou Maria Inácia Gomes Correia) é um dos emblemas culturais de Cabo Verde, país de expressão oficial portuguesa de pleno direito, pois até o Crioulo ou os vários Crioulos que lá se falam têm o Português como sedimento fundamental. Não era, como Cesária Évora, uma embaixadora internacional dos sons melancólicos da morna, aplaudida tanto em Paris como em Tóquio. Dentro de Cabo Verde, porém, foi uma espécie de figura tutelar e matriarcal. Chamam-lhe a “rainha do finaçon” e era também intérprete maior do batuku, dois dos géneros que compõem a tradição musical do país. Estava, aliás, anunciado para estes dias o lançamento de um novo disco dela, Finkadu na Raiz, em parceria com Ntoni Denti d’Oro, outro dos ícones de Cabo Verde.
Ouvi o nome de Nha Nácia, pela primeira vez, em Dimokránsa, um dos temas do disco Navega, da também cabo-verdiana Mayra Andrade. Vi-a, depois, no filme Kontinuasom, um documentário do espanhol Óscar Martínez. Aparecia com um lenço branco amarrado na cabeça, com grandes argolas douradas nas orelhas, e assemelhava-se a essas maravilhosas pretas velhas que às vezes se encontram nas ruas de Lisboa, falando um Crioulo áspero e belo.
No filme, Bety, a bailarina, vai ter com ela para lhe pedir a bênção para o seu sonho, um pouco como os guerreiros de antanho que iam encomendar-se aos deuses antes das grandes batalhas. Na realidade, Mayra Andrade, a cantora, também foi visitar Nha Nácia Gomi. Pedi-lhe para recordar esse dia e, assim, juntar-se a esta homenagem. Eis o que ela escreveu:
“Sinto-me feliz por ter partilhado uma tarde com Nha Nácia. Lembro-me do orgulho que senti naquele dia como mulher, como artista e cabo-verdiana que sou. Foi um momento fora do tempo, no qual, sentada na sala da sua casa, Nha Nácia me mostrou – como quem não quer nada – a complexidade da sua arte, da sua vida e do seu Crioulo rebuscado e profundo. Uma tarde em que vibrei com as suas profecias, o som da sua voz e a grande inspiração que durante uma vida inteira a acompanhou”.
Se a lusofonia não for isto...
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 15 de Fevereiro de 2011