sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Na Galiza a pensar em Cabo Verde

(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)


© Teatro Anatómico 2008 (Calhau, S. Vicente)


Andei pela Galiza, em Espanha, conversando com estudantes de Português a pretexto do romance “As Sereias do Mindelo”. Felizmente, e por uma vez, as sessões centraram-se sobretudo em assuntos literários, embora nunca me livre de responder a questões relativas à predilecção do narrador do livro pelas mulheres de Cabo Verde, ao seu respeito pelas meretrizes ou, ainda, ao facto de ter eu escrito também um livro que leva como título a frase “As mulheres deviam vir com livro de instruções”. Há, nessas questões, uma insinuação bastante concreta. Supõem-me um machista empedernido, algo misógino, quando não um Don Juan, um engatatão de primeira apanha, coisa que, em boa verdade e lamentavelmente, eu nunca fui e já não vou a tempo de ser, que os anos não perdoam e os feitios das pessoas não se mudam por decreto.

Existe, com efeito, uma certa tendência para confundir os enlaces da ficção com a biografia do escritor, o que, no caso de Cabo Verde e das cabo-verdianas, dificilmente poderia ser mais desfasado da realidade. Ao contrário do personagem principal de “As Sereias do Mindelo”, eu tenho pouca experiência com as mulheres das ilhas e ainda menos fortuna. E, com muita pena minha, conheço também relativamente mal o país, ao ponto de, um destes dias, quando cheguei a casa vindo da Galiza, me ter sentado no sofá a ver um documentário que passava na televisão e que tinha como fulcro a vida e a obra de Eugénio Tavares. Fiquei, pois, a sorver as imagens dessa ilha Brava aonde nunca fui.

Na última sessão na Galiza, um dos assistentes perguntou-me coisas sobre Cabo Verde e o motivo do meu interesse pelo país. Respondi-lhe que me apaixonei pela doçura das gentes e pela cultura crioula, por aquilo que ela tem de miscigenação e tolerância, ao ponto de me ter sentido em casa desde a primeira vez que aí aterrei; mas devia, muito simplesmente, ter dito que o fascínio e a paixão não se explicam. Dei-me conta disso quando o homem me perguntou mais coisas sobre o país e os seus hábitos e eu me vi mais ou menos impossibilitado de responder, por deficiente conhecimento da realidade. Disse generalidades, mas, também nesse caso, se tivesse conseguido ser honesto, devia ter-me limitado a reconhecer que ficcionei Cabo Verde; que, enfim, criei para mim uma certa ideia de Cabo Verde, do mesmo modo que inventei, no tal livro, um escritor dedicado a procurar consolo no amor de uma crioula.