segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Perdidos nas estantes

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 9 de Novembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Taralhouco como sou, aconteceu-me, pelo menos uma vez, comprar um livro que já tinha adquirido antes e jazia esquecido nas estantes lá de casa, à espera de ser (re)descoberto e lido. Fiquei, assim, com dois exemplares exactamente iguais de Bartleby & Companhia, o romance de Enrique Vila-Matas. Foi uma sorte, já que pude finalmente ler o livro e passei ainda a dispor de um belo presente para oferecer em alguma celebração imprevista.

O que agora me aconteceu é ainda mais bizarro e não posso, desta vez, atribuí-lo apenas à minha distracção (chamemos-lhe assim): comprei, no café da esquina, Uma Questão Pessoal, do japonês Kenzaburo Öe, numa dessas edições baratas feitas para serem vendidas com jornais e revistas, mas ontem descobri que já tinha lido este romance, embora, na realidade, eu tivesse lido um livro diferente, com outro título e outras personagens, ou, pelo menos, com personagens que, sendo as mesmas, têm nomes diferentes.

Explico, claro.

Quando, em 1994, Kenzaburo Öe ganhou o Prémio Nobel da Literatura, a editora Civilização fez uma reedição de um livro de 1964, que, no original, se chama Kojinteki na taiken. Na edição portuguesa, de 1973, o romance chama-se Não matem o bebé. A tradução, feita a partir da edição norte-americana, é assinada por Daniel Gonçalves.

Li Não matem o bebé sugestionado por um amigo e pela atribuição do Nobel, e nunca mais me esqueci da brutal história daquele pai confrontado com o nascimento de um filho com uma hérnia cerebral – um monstro com uma enorme cabeça, condenado a morrer ao fim de pouco tempo ou a viver como um vegetal. Voltei, aliás, a passar os olhos pelo livro quando, há dois anos, tive que entrevistar o brasileiro Cristóvão Tezza a propósito do romance O Filho Eterno, o qual narra uma situação semelhante e tinha acabado de receber o Prémio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e o Prémio Jabuti.

Tinha apreciado o estilo de Öe e, por isso, comprei Uma Questão Pessoal quando, há alguns meses, o encontrei à venda no café da esquina. Comecei a lê-lo este fim-de-semana e, ao cabo de algumas páginas, a história começou a parecer-me familiar. Fui comparar Não matem o bebé e Uma Questão Pessoal e não há, afinal, qualquer dúvida. Trata-se exactamente da mesma narrativa e do mesmo livro, embora, numa das edições, o pai da criança se chame Passarinho e, na outra, Bird. As traduções são também bastante diferentes, provavelmente porque Uma Questão Pessoal resulta de um projecto de uma empresa espanhola, a qual vendeu a colecção ao grupo Cofina, pelo que a tradução de Nuno Castro talvez tenha sido feita a partir da edição em Castelhano (que adoptou o título inglês, A Personal Matter).

Como não me estava a apetecer revisitar Não matem o bebé, mas também não tenho nenhum livro novo para ler, dei uma vista de olhos às estantes para ver se por lá havia mais alguma surpresa escondida. Encontrei imediatamente O Xangô de Baker Street, do brasileiro Jô Soares. Está ali há dez anos, mais ou menos, e ainda não o tinha lido. Já o encetei e, com a crise que para aí vai, espero não voltar a comprá-lo tão cedo.