(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)
Fui à Casa da Música (a do Porto, claro) para ver e ouvir o angolano Paulo Flores e, sendo assim, preparei-me para viajar no tempo e no espaço, até aos quintais periféricos da Luanda de 1950/60, onde nasceu o semba que o Paulo evoca no disco “Raiz da Alma”. Mas, inevitavelmente, dei por mim a recordar também os quinze dias de férias que passei na capital angolana, os bairros do Marçal e do Samba tal como são no século XXI, um almoço em casa do Paulo, durante o qual ele tocou violão e falou da sua música, de vê-lo cantar uma noite na Casa 70, num dueto com a brasileira Mart’nália, e, depois, numa batucada na Associação Chá de Caxinde, na qual também cantou o Tito Paris. Quando a jam session terminou, uma banda local de covers tocou o “Porto Sentido” do Rui Veloso e eu vi-me como que reenviado a casa, às “ruelas sujas e gastas” e aos “lampiões tristes e sós” da minha cidade.
Estava, pois, a recordá-lo, embalado pela nostalgia e pelo semba, quando o Paulo chamou ao palco da Casa da Música o Tito Paris, o Tito Paris outra vez e agora no Porto, os dois cantando “Clarice” e agora na minha terra, o que me pareceu uma coisa muito mágica, uma dessas mariquices que, às vezes, me enternecem e arrepiam. Estávamos os três no Porto, desta vez, mesmo se nem o Paulo nem o Tito se recordam do indivíduo com cara de parvo que uma vez passou por Luanda e lhes disse “porra, isso é música da minha terra” enquanto no pequeno palco do Chá de Caxinde um angolano cantava o “Porto Sentido”.
No final do concerto, num momento em que o Tito me estendeu a mão por delicadeza, depois de cumprimentar um amigo comum, recordei-lhe essa noite em Luanda, da qual ele evidentemente não se lembra. Não importa nada, na verdade. Neste breve encontro com o Tito, foi sobretudo do Porto que falamos, do Porto sentido, que o Tito acha que é uma cidade incrível, e do meu/nosso/dele Futebol Clube do Porto. Contou o Tito que, mais do que portista, é doente pelo Porto. Disse-me que os filhos dele também são portistas e que já o avô dele o era, naquele tempo recuado em que ninguém em Cabo Verde era portista (e que o Tito Paris sinalizou com um movimento circular com a mão, por cima do ombro, que imediatamente me remeteu para o tempo da outra senhora, da opinião única e do clube único). Ocorreu-me dizer-lhe que, para mim, Cabo Verde também é uma doença desse género, inexplicável e profunda, mas calei-me. Sou, afinal, um crioulo de primeira geração - e isto, evidentemente, não interessa nada a ninguém.