(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)
Quando, há dois anos, estivemos juntos no Mindelo, o actor e meu amigo Flávio Hamilton comprou um livro, “Os Trinta Dias do Homem Mais Pobre do Mundo”, obra de um artista que eu, então, apenas conhecia enquanto músico: Mário Lúcio de Sousa. Estou até hoje à espera que o Flávio me empreste o livro, ao qual teceu rasgados elogios, mas uma parte da minha curiosidade acaba, porém, de ser saciada. Estou, graças à cumplicidade de um amigo comum, a ler o próximo livro do Mário Lúcio, “O Novíssimo Testamento”, que já venceu, aqui em Portugal, o Prémio Carlos de Oliveira e vai, ainda este ano, ser editado por uma editora de grande prestígio. A leitura confirma o que o Flávio me dissera: Mário Lúcio é (também) um escritor de mão cheia.
Sendo um livro completamente despojado de pontos finais, “O Novíssimo Testamento” é, desde logo, uma obra torrencial, com um modo de narrar que, em alguns momentos e salvas as devidas distâncias, evoca a escrita de José Saramago. Li-o na versão que venceu o Prémio Carlos de Oliveira (creio que não será a definitiva, uma vez que está nas mãos de uma das mais competentes editoras portuguesas, a Maria dop Rosário Pedreira, a qual poderá ainda limar o romance e expurgá-lo de alguns excessos) e o que mais me impressionou foi a imaginação delirante do autor. O texto prende imediatamente e tive mesmo a tentação de escrever que se trata de uma obra-prima. E ponto final. Mas, como não sou crítico de literatura, deixarei isso para quem seja do ramo.
Basta ler, por exemplo, a enumeração de produtos que podem ser encontrados à venda numa pequena loja de Cabo Verde, não maior do que um quarto de dormir, para se ficar com a certeza de que estamos perante um autor com uma capacidade de observação agudíssima e um enorme sentido de humor, para além, claro, da agilidade narrativa que demonstra a cada passo. Mas o “argumento” do livro fala por si: uma mulher velha e casta morre e, cumprindo-se a sua última vontade, é chamado um fotógrafo (italiano, na falta de alternativas) para lhe captar o retrato. Quando a máquina dispara, a velha desaparece do leito mortal e, ao ser processada a película, a imagem revela-se no papel como uma reencarnação de Jesus, a cara chapada dele, provocando uma invasão da ilha de Santiago por uma multidão convencida de estar perante um regresso do prometido. Quem ainda não leu não perderá pela demora.