(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)
Deveria, talvez, escrever alguma coisa sobre essa espécie de Crónica de uma morte anunciada que é Os Dois Irmãos, o romance de Germano de Almeida com que tenho entretido as minhas viagens nos transportes públicos, mas estou tornando-me consciente de que não percebo nada de literatura e, por isso, entendo ser melhor deixar em paz André, João, Maria Joana e o desconcertante trio do tribunal reunido para julgar o crime narrado pelo Germano. Falarei, em vez disso, de como, estando lentamente abdicando da literatura e do conhecimento dos seus mistérios, me tenho debruçado, antes, sobre a observação da vida dos outros e do curioso jogo que pratico enquanto tento adivinhar se uma determinada pessoa com a qual me cruzo na rua é ou não cabo-verdiana - e se daria, eventualmente, uma boa história para esta crónica, habitualmente tão falha de assunto.
Adquiri, é verdade, a mania de que sou capaz de identificar um natural de Cabo Verde, convicção soberba e um pouco tola, a qual tento confirmar pondo-me à escuta do que diz (sendo caso disso), para ter a certeza de que o objecto da minha observação é efectivamente um falante de Crioulo. Sucede, às vezes, acabar por escutar alguém que, muito simplesmente, está a falar brasileiro, coisa que também não me espanta desde que, por volta de 1999, li um texto de um cronista brasileiro narrando como, ao procurar a origem da famosa bunda de Vera Cruz, acabou por descobrir Cabo Verde e os sinais exteriores de beleza que aí se escondem.
Quero, sendo assim, reconhecer que não sei se me equivoco ou não, mas, há dias, regressando a pé de uma reportagem, deparei, ao virar uma esquina, com uma mulher sentada num banquinho à inexistente sombra de uma árvore. Tenho quase a certeza de que era uma badia de extracção humilde, pela corpulência saudável que aparentava e pelo modo como tinha os brincos postos nas orelhas e o cabelo apartado em tranças. O que me comoveu deveras é que a mulher, encostada a uma dessas árvores mirradas que há na cidade e às quais ninguém presta atenção, estivesse lendo, presa do mistério e da magia que houvesse no livro que tinha entre as mãos, nele mergulhada enquanto, sendo domingo, os demais habitantes do bairro humilde se achavam reunidos no café, em pleno desfrute da cerveja e coçando as partes, ou não fosse o domingo dia sagrado para os adeptos do nada fazer.
Vi essa mulher e tive pena que não estivesse ela lendo também o livro do Germano Almeida, o que talvez pudesse ser assunto para uma conversa breve de solera di porta. Devia ter parado mesmo assim e ficado a papiar ma ela, mas não o fiz. Tal como sucede com as coisas da literatura, suponho que também não tenho grande vocação para entrar na vida dos outros.